02 December 2016

Episódio 04 | Parabéns, é um Ser Humano! | Ou: Os tempos, eles estão a mudar!




 Entre o segundo dia de trabalho no restaurante chinês, o último fim de semana nas obras, e a procura de algo melhor, a vida foi passando. Olhando para o calendário, só estamos a falar de finais de Novembro e meio de Dezembro. Mas, para o bem e para o mal, a vida de um emigrante demora a passar. Lá fora, cada dia tem 24 horas. Imaginem o que fariamos com 24 horas em Portugal, como estaria a nossa economia, ao invés de só termos 12 horas e 4 serem passadas em transportes. É do que mais sinto saudades. Lá vivia-se, mesmo que alguns dias já fossem sobre rotina. O tempo simplesmente passava a pé e parava nos semáforos, em vez de voar. Sinto que me lembro de todas as vezes que fiz o mesmo caminho. Pode ser explicado por ser um ambiente novo e estar lá há, relativamente, pouco tempo. Mas não me parece que seja só isso. Há uma influência causada pelo ritmo da cidade e população em si. Não sou o único a pensar o mesmo, além de obviamente a minha esposa, um amigo nosso romeno (este detalhe é crucial), que chegou à Dinamarca poucos dias antes de nós, disse-me que quando foi um ano depois à Romenia (vêem?) achou que algo não estava bem. Foi bom ver a familia e amigos, mas depressa sentiu falta da tranquilidade de Aalborg. Existia um comodismo especial que sempre senti mesmo nos meus momentos mais dificeis.

Eu e a minha namorada iamos de manhã para a universidade e voltávamos só à noite. Não é assim tão impressionante, saíamos de noite pois o Sol só aparecia às 8h30 e às 8h32 já estava a ficar escuro. Era como se o Sol só desse um pulo. Ao jantar era quando nos reuniamos mais a nossa amiga ilegal. Ou talvez fossemos nós os ilegais por a termos na nossa renda. A nossa casa, oficialmente, tinha dois quartos mas independentemente de sermos um casal, tem de ser por lei um quarto por pessoa. Não admira que tivessem uma população com falta de jovens, nem depois do casamento se pode dormir na mesma cama.

É uma lei com boas intenções, evitar o fenómeno couchsurfing, mas foi algo pensado por alto. A nossa casa tinha, oficialmente, dois quartos. Mas a sala de estar é considerado como um quarto. Para facilitar, a cozinha é aberta na sala. Ou seja, privacidade foi um conceito que deixei de tomar como garantido durante 9 meses.

Nós decidimos ser honestos e contar ao nosso caretaker, o Hans [Zimmer], que iamos ter um bebé. Pareceu suspeito termos entrado na casa dia 1, termos descoberto no dia 5, e termos contado na semana seguinte. Mas o Hans apreciou a nossa honestidade e termos mostrado ser de confiança (a nossa amiga ainda não estava na casa). Disse que teriamos de arranjar uma casa com um terceiro quarto, mas, por ele, faria como se não tivesse ouvido nada e que poderiamos ficar se quiséssemos, não se comprometendo a qualquer questão levantada pelas autoridades maiores claro. Gostámos do Hans mas sentimo-nos mal por estarmos a mentir ao mesmo tempo que eramos honestos. Em retrospectiva, no entanto, não me arrependo nada.

Conheciamos muito mal a Sandra, além de ser portuguesa e de nos termos visto duas vezes, e creio que ambas partes não estavam muito convencidas em morarmos todos juntos. Não só pela falta de confiança natural, mas pelas experiências que já tinhamos em dividir casa, sendo que a Sandra aqui pode contar mais por já estar há uns anos em Aalborg. Penso que estava há 70 anos, a julgar por como conhecia a cidade. Conhecemo-nos pelo Facebook enquanto estávamos em Portugal a planear fugir da vizinha que nos roubava o estendal e foi uma conselheira fulcral. Por outro lado, tinhamos a mesma experiência de saber que há riscos que têm de ser corridos e a verdade é que mesmo que nós quiséssemos ser um casal sozinho numa casa e a Sandra não quisesse viver com dois estranhos (apliquem o significado que preferirem), era benéfico para todos naquela altura.

O bacalhau com natas no estrangeiro é uma experiência a ser partilhada


Fico feliz por reportar que a Sandra foi uma pessoa impecável e das amizades que trouxemos connosco na viagem de volta. Não deu para trazer as amizades todas porque no porão só podem ir 20 Kg portanto os amigos com menos dinheiro ficaram por lá.

Não contámos imediatamente à Sandra, ainda nos faltava ir à Maya para confirmar, mas não foi muito depois que nos sentámos os três para revelar que viria a ser tia. Foi um acto (a situação deu-se na Dinamarca, onde as algemas do acordo ortográfico não têm jurisdição) que nos proporcionou conforto e temas de conversa. Falei da privacidade, isto é, nós estarmos numa cama na sala e a Sandra ter de entrar no nosso espaço para ir à cozinha, mas a verdade é que não podia ter sido mais tranquilo. Claro que para ela seria mais dificil pois sentia que estava a invadir um espaço mas, dentro do possível, dividiu-se bem a casa. Apesar de sermos nós os titulares da casa, optámos por lhe dar o quarto pois já seria mau para ela o suficiente ter de partilhar casa com estranhos, o minimo que podiamos fazer era dar-lhe privacidade. E com isso acabámos por nunca dormir no "nosso" quarto, nem por uma noite. Na sala, havia uma janela que percorria toda a parede e uma porta para o jardim. Tinhamos um estore que albergava até à porta, pelo que espreitando pela mesma, toda ela em vidro, podia-se espreitar a qualquer momento e observar o meu aspecto em boxers. Se fosse em Portugal, estaríamos a ser constantemente vigiados por idosas e por quem achasse que tinhamos um placar da Remax. Ou os Dinamarqueses são de facto tímidos e respeitadores do espaço de terceiros, ou um deles viu-me nu e espalhou a notícia.
A questão que pairava, no entanto, era onde iriamos pôr o bebé. Numa caixa, claro, mas e depois? Ficariamos os três na sala? Correndo bem, ao fim dos 9 meses já estariamos estáveis, não obstante graças ao apoio de paternidade; e a própria Sandra também queria sair para uma casa própria, a sua estadia por aqueles vales seria sempre provisória. Como fariamos para organizar a casa e receber o morcego? Independentemente do plano, havia ainda a incerteza de podermos ficar na casa, especialmente com as inspecções a serem feitas. O que nos leva ao seguinte ponto.

A confirmação.

Agendámos uma marcação e lá fomos para a clinica. Existe um pópido electrónico que solicita o nosso código para ser feito o check-in. A marcação estava para as 10h e nós chegámos às 10h05. Sentámos, observámos quem nos observava, e depois de termos cheirado o cú uns dos outros ficámos todos na sala à espera de sermos chamados ou de entrar um cão novo. Às 10h07 apareceu a nossa médica na sala a chamar-nos, não valendo a energia gasta em nos sentarmos. Estava apressada pois só tinhamos um máximo de 20 minutos e já tinhamos perdido 5. Nós ficámos incrédulos com o conceito de sermos atendidos durante o horário combinado, como fazem os amigos (até se tornarem melhores amigos, aí estão já a sair de casa). Para nós, portugueses, que já é conhecido a táctica de pegar na senha 67 numa quinta-feira, ir passar o fim-de-semana em Estremoz na casa do tio Cassiano e quando voltamos ao Centro de Saúde na segunda-feira o número já ir no 48; isto é inovador! Adeus Windows Vista!
Gostei da Dra., simpática e entusiasmada com a nossa situação, talvez um pouco mais que nós. A minha mulher foi despejar água Luso e a Dra. foi analisar. Regressou ao gabinete dizendo, sem sombra de dúvida: "Oh yeah, you're pregnant!", como se as hormonas presentes na urina tivessem explodido o aparelho. Não pensei vir a debater a urina da minha mulher publicamente. Considero isto um milestone. Mas notou-se uma breve apreensão que gelou a sala. A Dra. perguntou-nos se queriamos manter o bebé. Sem demorarmos a responder, dissemos que sim, e a sala encheu-se de grinaldas. Parecia orgulhosa e procedeu a explicar-nos o que precisávamos e como viria a decorrer caso tivéssemos o bebé na Dinamarca, onde tivémos de preencher alguma papelada com as nossas preferências na altura do nascimento da nossa senhora. Essencialmente, vitaminas de grávida, sendo que continham uma dose reforçada de vitamina D devido ao mito que era o Sol, que no fundo não era mais do que uma geringonça com um velhinho a segurar um candeeiro de petróleo para uma lupa muito graduada, e todos sabem que os velhos adormecem sempre depois do Primeiro Jornal.

Havia ainda a questão da midwife, que ao contrário de como soa, não era [em principio] uma segunda mulher que construia um triângulo amoroso. Era sim uma enfermeira que viria semanalmente ajudar-nos com explicações, produtos e contar os rins no corpo da criança. No fundo, era ter as consultas de pediatria iniciais em casa, o que incluía a vacinação ao invés de levarmos um recém-nascido a um centro de saúde, que é tudo menos o que o nome implica. Serve de enfermeira, pediatra, assistente social e base para copos. Seria sempre a mesma durante 6 meses, depois as visitas diminuariam de frequência para que também nos desse espaço para fazermos o irmão. Só se tivesse em folga é que viria uma substituta e só em situações de risco é que iriamos a um pediatra. A Midwife também estaria presente no parto e este poderia ser feito em casa, de acordo com as preferências que indicássemos no formulário. Era atribuida automaticamente tal como os nossos médicos de família assim que fazemos o nosso ID. Nunca conheci o meu, mas a julgar pelo nome que está no meu ID teria de dizer na recepção "Hi, I'm here for an appointment for Doctor 'Coisinho', last name 'Dafuk'." "On your left" "Mange Tak!".

Como um último reparo, revelando que acabámos por ter o bebé em Portugal, também os métodos seriam diferentes. Não haveria quaisquer incisões e seria tudo ao ritmo da minha esposa ao invés de nos apressarem para irem a tempo da hora de jantar.

E durante os nossos melhores dias, os tempos foram assim. Chegávamos, reuniamos, jantávamos e planeávamos em familia. Tipicamente, o dia acabava com a Sandra a dar-me algo Dinamarquês a provar e a viciar-me.

Caraças Sandra!


Uma última curiosidade sobre onde nos encontrávamos, de forma a abalar a minha religião de Amigólico (somos um culto pequeno. Acreditamos que a Amizade nasceu por necessidade e o amor nasceu ao terceiro dia, sem ninguém a olhar-nos do céu por terem mais que fazer), fomos morar para um condomino cheio de grávidas. Nunca vi tantas barrigas. Se não o tivessemos já feito, a pressão trataria do resto. Mas o maior sinal dos reis magos estava na nossa caixa de correio. Um babygrow embalado, com uma caixinha com dois brincos. Provavelmente os moradores anteriores foram embora antes da encomenda chegar. Guardámos, apesar de nunca termos usado. Mas não se sintam mal pois quando regressámos chegou uma encomenda surpresa das nossas amigas da França e ds Eslováquia, com roupinhas e doces, que ficou para alguém e nunca veio para trás.

Já provaram gomas da Eslováquia?

Nem imaginam o que perdemos!

Não, a sério, caraças Sandra!

No comments:

Post a Comment