20 January 2017

Episódio 09 | A Lei de Murphy | Ou: E se a cotovia não cantar



Eu tinha previamente desabafado com o grupo da universidade que eu seria o único que gostava de manter o grupo. Não éramos um grupo perfeito e mesmo tendo membros interessantíssimos, não funcionávamos muito bem. Mas alguns deles estavam comigo desde o inicio e foram as primeiras pessoas que conheci e a quem me dei a conhecer na Dinamarca; que não fossem portugueses. Foi também com quem muito desabafei a minha experiência não só de estar ali mas de saber que viria a ser pai. Eu gostava do grupo apesar do disfuncional que podíamos ser. E honestamente, eu não era um membro valioso para o grupo. O meu único valor foi na componente multimédia e nas apresentações de grupo nos auditórios. Mas eu entendia o porquê de não quererem continuar. Uns estavam chateados, outros estavam desejosos de trabalhar com outras pessoas e outros simplesmente deixaram de acreditar que o grupo os pudesse levar mais longe, o que era compreensível.

O que eu temia era o dia 1 de Fevereiro, o dia em que teríamos de formar novos grupos. Éramos deixados à solta numa sala e tal como gotas de água num vidro, umas iam se juntando e ficando mais gordas. Eu fiquei numa parede sem escolher. Não conhecia mais do que de vista, e juntaram-se todos mais depressa do que eu esperava. Nisto, o L levanta-se, já tendo combinado que ficava com o Kasper (um dos milhares), e olhou para mim no canto e perguntou se eu queria juntar-me. Fiquei surpreendido e incrivelmente grato. Fomos compondo o grupo e lá estávamos nós na nossa sala. Éramos todos esquisitos, eu incluído. Imaginem o grupo de Stranger Things mas sendo todos o miúdo desdentado. O grupo estava interessante e havia diversidade competente. Tínhamos a organizadora, o amante de matemática, o designer, o programador, o gajo dos vídeos, o que fazia tudo e o que sofria de Aspergers. Foi a primeira vez que conheci alguém com esta doença e posso dizer que tinha das melhores mentes. O seu raciocínio era fantástico e foi uma ajuda crucial ao grupo. Se não soubesse, aprendia, e aprendia rápido. O único problema era só conseguir trabalhar metade do nosso tempo por questões de exaustão mental, mas talvez trabalhasse melhor. O L depressa aprendeu a aproveitar os seus momentos de energia e não se importou que ele trabalhasse em casa. Aliás, a dada altura todos trabalhámos em casa ou às horas que quiséssemos na universidade. Claro que isso gerou o problema de muitos deixarem de trabalhar ou se quer falar.

Eu disse no inicio o que eu temia: além de estar com depressão, não sabia se ia acabar o semestre por ter de voltar para Portugal. Mas iria sempre trabalhar até ao final mesmo que fosse embora. O L respeitou isso. A verdade é que muitos foram embora, não só do grupo anterior como do actual, e acabou por ser um grupo de 3 pessoas a trabalhar, em 8.

Ainda hoje falo com um dos meus colegas do primeiro grupo, o Anders, que me
deu a conhecer muito sobre a Dinamarca. Sempre tive uma enorme estima por ele.


Lá por casa, após saber que diziam à minha esposa que eu não voltaria para ela e para o bebé, e que já estaria com outra, decidi a escolha mais sensata para tranquilizar a imprensa cor de rosa: quis partilhar a casa com uma rapariga. Chamemos-lhe Anniehall, porque não é bem mas chega a ser. Era uma rapariga porreira para se ter como roommate até porque cozinhava muito bem. Provei pouco mas não por falta de oferta, foi amável a oferecer-me os ingredientes que tinha e doses das suas refeições. Talvez demais. Tirava um pouco e deixava a travessa dizendo que eu podia tirar também. Eu retirava a dose semelhante à dela a julgar que viria a guardar o resto mas ficava sempre surpreendida por ter sobrado tanto, como se não lembrasse de ter cozinhado e mandava para o lixo. Era suposto eu comer tudo? Nunca saberei, mas talvez fosse uma indirecta pois ela só fazia pratos vegetarianos. Fez-me um prato de brócolos, queijo e batata no forno. Era bom. O queijo e as batatas, pelo menos. Os brócolos podiam ir para o inferno junto do Ricardo Salgado e o Correio da Manhã, tudo com existências abomináveis. Eu tentei, achei que o queijo talvez ajudasse, mas aquele brócolo que demorei uma semana a degustar, empurrando esófago abaixo com um piaçaba, sabia precisamente a Correio da Manhã. Outro prato foi uma espécie de torta de ovo com o iogurte mais amargo que já provei. Era bom, apesar de ser discutível a necessidade do iogurte. Mas os seus cozinhados perfumavam bem a casa e, como digo, cozinhava bem, apesar dos meus gostos diferentes. O queijo búlgaro parece-me ser óptico para cozinhados.

O seu único defeito era deixar os cabelos no ralo do chuveiro para eu apanhar e por eu deixar o seu namorado ficar de tempos em tempos, as relações sexuais emigrantes também aconteciam frequentemente com a diferença de esta vez ouvir mais o rapaz, o que talvez diga muito sobre as performances. Quando eles praticavam a abstinência, eram os vizinhos de cima que iniciavam a última ceia. Sempre suspeitei se era realmente isso que se passava em cima. A primeira vez que ouvi o barulho fui espreitar lá fora ver o que se passava, ainda com os meus reflexos de viver no Cacém. O que me intrigava era ser um som constante do que parecia ser uma velhinha numa cadeira de baloiço que precisava de óleo (a julgar pelo barulho, não sei se era a cadeira, a velhinha ou os dois a precisar de óleo), mas não fazia sentido com o horário a que ouvia. Só podia ser sexo dinamarquês.

As minhas noites eram preenchidas por esta imagem



Por alguma razão a minha estadia na Dinamarca passou por ouvir outras pessoas a fazerem sexo à minha volta. De facto, era um país frio, mas as casas eram bem isoladas e mais quentes do que o nosso Verão, não se justificava tanto ponto de embraiagem. Ninguém estudava naquele país?

Era suposto a Anniehall ficar até Agosto mas como já descrevi anteriormente, cada dia Dinamarquês corresponde a 4 semanas portuguesas. Ou 6, quando chegam as contas para pagar. Eventualmente tive que me debruçar sobre a realidade de que podia ter de sair mais cedo e fiz questão de que ela estivesse preparada para o pior cenário. Mas não sem antes eu tentar o meu trunfo: o Pitstop.

O Pitstop era o café ao lado do Danhostel, onde todos os refugiados Europeus passavam os seus primeiros anos. O Pitstop era popular entre os sobreviventes do Danhostel por dois motivos: tinha internet e era o único estabelecimento à volta num raio de 800Km. Ir ao centro da cidade desde o Danhostel pela primeira vez assemelhava-se à caminhada até Fátima mas com o dinheiro a ser melhor empregue. Os donos do Pitstop conheciam-nos [temporariamente] por irmos lá todos os dias e ficávamos tão em casa que já levávamos fichas triplas para que todos os portáteis tivessem uma oportunidade. Dentro do nosso grupo de sobreviventes, quando ainda nenhum de nós tinha casa, existia um romeno que me esqueci do nome. Chamemos-lhe Pantufa pois era gordo e fofinho. Todos gostavam do Pantufa e era realmente das personalidades mais simpáticas e humildes que tinha conhecido. Não demorou muito para que os donos do Pitstop lhe arranjassem um contacto de alguém que procurava por um trabalhador que arregaçasse as mangas para o que fosse. Foi uma história que depressa virou lenda, uma história em que nós contávamos uns aos outros para dar esperança à frente da fogueira. O destino do Pantufa tornou-se incerto para mim, deixei de ouvir falar dele quando descobrimos todos que este rapaz dócil e extremamente simpático era a besta mais homofóbica que pisou a Europa.

Voltar ao Pitstop depois de tantos meses trouxe-me memórias incríveis. Foi ali que tudo começou. Estava agora sentado sozinho num canto onde estive em tempos rodeado de pessoas que gostava. O cheiro daquele café era icónico para mim, incluindo a casa-de-banho pois era um palácio a comparar com o que vivíamos no Danhostel.

Também se via muito bom cinema

Um dos passatempos favoritos do Pitstop era ver a Sarah Jessica Parker a correr



Depois de beber o meu último café de 10 kr, estando já sozinho em todo o café, levantei-me e dirigi-me ao patrão, como se o fosse assaltar. Contei-lhe a minha história e perguntei se conhecia alguém que me pudesse arranjar trabalho, afinal ele conhecia tanta gente que por ali passava (era também uma casa de jogos) e eu tinha a lenda do Pantufa a dar-me esperança. Infelizmente, a esperança foi em vão. Ele não conhecia ninguém que me pudesse ajudar, mas desejou-me sorte e que não parasse de procurar. Eu agradeci-lhe e despedi-me pela última vez.

Depois fui para casa ao longo da noite a pé, no meio de neve e nevoeiro, qual D. Sebastião. Foi a primeira vez que vi tudo a preto e branco.



Não cheguei a compreender se eram luzes ou OVNIs




A procura de trabalho foi um processo, como imaginam, árduo. E apesar de ter terminado nestas imagens a preto e branco, foram inspiradas por uma outra imagem a preto e branco.

Quando a minha namorada regressou a Portugal, além de ter ido com a missão de dar a feliz notícia de que estaria presa a mim e de que afinal eu iria fazer parte dos álbuns de família, foi também fazer a sua primeira ecografia. E à distância, eu vi pela primeira vez o meu filho.




Tendo em conta o meu gosto por cinema e pelo meu trabalho na área, bem como a minha ligação genuína desde pequeno pela 7ª Arte, é poético a primeira vez que vi o meu filho ter sido em vídeo. Eu estava, na verdade, a olhar para o passado, para algo que já foi. Mas algo que foi fantástico. Embora difícil de entender como viria a ser esta criatura, as horas de contemplação pela forma que o nariz e os lábios desenhavam gerou calor em tempos gelados.

Na ecografia estava tudo bem, mas o médico além de silencioso disse para a minha namorada fazer outra ecografia para analisar o coração pois não lhe agradava. Foram momentos de preocupação assustadora mas que revelaram ser inúteis quando tivemos a opinião de uma médica mais experiente durante as seguintes ecografias, tendo dito que estava perfeitamente saudável e que o outro médico era um idiota, a bem dizer.

Esta imagem e a noção de já ter visto o meu filho fez-me dar todos os passos que consegui enquanto sozinho noutro país, e muitos desses passos foram a escutar Mockingbird de Eminem, em loop constante. Uma boa parte da letra era assustadoramente próxima da minha verdade, e apesar do triste que era, também havia motivo de coragem e força. Acompanhada por Lazarus de David Bowie, foram as músicas que ouvi sem parar diariamente e as letras que compuseram os meus sentimentos. Eu sentia-me perdido, mas com a necessidade de caminhar. Estava era a andar sem rumo e a ficar mais exausto do que realmente achava.

Até que chegou a altura de tomar uma decisão. Talvez a mais estúpida, mas certamente a mais difícil. Uma onde eu não tinha como ganhar, pelo menos por um tempo.


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