11 January 2017

Episódio 08 | Lazarus | Ou: Cadeiras vazias e mesas vazias





 Janeiro era dos melhores meses para arranjar trabalho pois muitos estavam fora. Certo, regressariam em meados e chegaria também em breve mais um contentor de emigrantes, mas até arranjarem casa e tratarem do cartão de identidade, eu tinha alguns meses de avanço. Ainda assim, estava num contra-relógio pois tinha de arranjar trabalho durante o pouco tempo que me restava para finalizar a animação 3D para entregar a tempo, tendo depois de me reunir com o grupo para prepararmos a apresentação do nosso projecto.

Preparei a casa tanto quanto pude para receber o novo roommate. Vou-lhe chamar Leonidas porque o seu nome é parecido mas não tem nada a ver. Visto ele não saber onde ficava a casa por nem os dinamarqueses conseguirem soletrar o nome da rua, fui ter com ele ao Nordkraft à noite, numa rua escura e sem ninguém, que é o que se quer quando se combina um encontro com um estranho.

Conhecemo-nos durante o caminho e fiquei a saber que ele só ficaria um mês para acabar o seu curso, por isso eu teria de arranjar alguém no final de Janeiro. Gostei dele, tinha uma fivela com o símbolo do Batman por isso eu sabia que era boa pessoa. Perguntou se podia usar um pouco do meu azeite e tirar um bocado de esparguete pois não trazia nada consigo para comer. O meu erro não foi ter deixado mas sim ter dito que era azeite português caseiro, da avó da minha esposa. Isto simbolizou que não viria a comprar azeite durante todo o mês. Não o censuro, o azeite dinamarquês sabe a água. Nem tudo é mau, o bacon é o ingrediente suficiente para me conquistar naquele país pois o pior bacon que tiverem, aquele todo bolorento e pisado por três tractores no meio da estrada por ter caído da carrinha de distribuição da loja Netto, esse bacon, é melhor do que o nosso bacon mais gourmet. É divinal! De resto, a nível de comida, pouco mais se aproveita.

Havia sempre pequenos prazeres de outros países, no entanto




Onde ia eu? Ah, pois, os mantimentos que colhi para o inverno estavam a gastar-se com a partilha, incluindo a pasta de dentes. Mas é por um mês, eu aguento. O que ele gastava, eu poupava para balancear. Por exemplo, ele ficava acordado durante a noite com a luz no quarto e eu ficava à luz da vela, só usava a luz para cozinhar. Por isso fiz os meus trabalhos à escuras, relembrando que a vida lá fora era igualmente escura. Foi um mês muito sombrio.

Ena, Sol!


Eu só impus a regra de não fazer barulho e de fumar lá fora. Ele respeitou a parte do tabaco. O único problema, não necessariamente do próprio, era a porta da sala/cozinha/meu quarto abrir-se com a diferença de pressão pela porta da rua aberta. Ou seja, a minha porta abria sempre que ele ia fumar durante a madrugada, e eu acordava sempre com o barulho. Pior era quando ele ia à cozinha durante a madrugada fazer café. Sabem, o conceito de uma máquina de café tem o defeito de fazer muito barulho, particularmente quando a cafeteira está repleta de calcário da água. Fez isso duas vezes, de luz acesa, comigo claramente a despertar com a situação, até eu lhe ter dito para levar a cafeteira e fazer o café que quisesse no quarto.

Sabem o que também faz muito barulho? Relações sexuais entre emigrantes.
Leonidas levou uma senhora para jantar, precisamente no meu último dia para enviar o trabalho. Estive a trabalhar enquanto ouvia uma senhora a sentir felicidades no quarto ao lado. A noite toda. Acabei por não descansar nada e sair da cama pois continuava a ouvir a senhora a gritar bingo, como se estivesse à minha frente.

No dia seguinte chamei-lhe a atenção para o barulho, não por mim mas pelos vizinhos. Ele disse que não tinha sido ele a fazer barulho, rasgando-se num sorriso lento semelhante ao Grinch. Admito, mesmo na altura, foi engraçado.
Enquanto eu trabalhava no meu projecto, e enquanto ouvia o tema do Rei Leão no quarto ao lado, eu pesquisava por trabalho. Mesmo na última noite em que me restavam poucas horas para terminar, eu percorria tudo o que era sites de emprego. A minha caixa de email depressa se encheu com este tema. É algo que felizmente aconteceu muito, receber respostas a dizer que não estavam à procura neste momento ou que simplesmente não fui aceite. Dei valor ao facto de se terem dado ao trabalho de me dizer alguma coisa sem ser com uma mensagem colada. Alguns desejaram sorte e até aconselharam. Tornei-me muito bom a vender o meu peixe e a escrever cartas de motivação, pois eu estava mesmo motivado. Era isto ou nada. Mas, nada foi.

Destaco dois pedidos de trabalho. O primeiro foi num hotel em plena Jomfru Anne Gade, onde o recepcionista levantou-se e afastou-se de mãos algo no ar como se não quisesse problemas comigo. Calhou bem, porque eu também não queria problemas com ele. Disse que não valia a pena eu entregar o meu currículo e que era melhor eu guardá-lo. Perguntei se nem para tratar da roupa suja eu servia mas disse que gostavam de ter a equipa dentro do mesmo idioma. Fui-me embora, algo ressentido. Eu percebi-me perfeitamente, não faz muito sentido fazer reunião com os empregados para dizer que vão receber o Marcelo Rebelo de Sousa por isso portem-se bem e dizer "e agora, em inglês". É uma questão de organização e conveniência. Mas foi o primeiro e único que se afastou de mim como se eu fosse nojento e que não deveria estar ali. Ainda pensei que fosse pelo meu aspecto, honestamente. Afinal, a minha barba tinha batido o record pessoal. Mas soube mais tarde que a minha amiga Elisa, a Engenheira, foi ao mesmo hotel e teve precisamente a mesma reacção. Eu conheci a Elisa em Agosto de 2015 e desde esse verão nunca a vi com barba, o que me leva a concluir que não seria esse o problema. De todas as minhas procuras, esta foi a que doeu mais. Por norma bastava eu entrar e deixar o currículo após uma breve apresentação, mas esta recusa abateu-me um pouco.

A segunda história que destaco não foi tanto o pedido por trabalho em si, mas momentos antes. Ainda estava a viver com a minha esposa e com a Sandra, quando fui à apelidada foodstreet procurar por trabalho até ser abordado por um indiano. Acho que era indiano. Parecia-se com um. Como eu, que parecia um espanhol. Ele perguntou-me se havia uma universidade ali por perto, ao qual respondi que sim, e disse-me o seu nome mas a meio das primeiras sílabas eu esqueci-me. Parecia bom rapaz e eu habituado a um povo simpático e a precisar de ajuda, escutei o que tinha para me dizer de bom agrado. Falou-me de um grupo de amigos e do que me pareceu ser uma espécie de convite. Este culto realizava milagres. Ao principio parecia semi-credível, até dizer que um rapaz que tinha muitas dores numa perna mais curta que a outra ficou curado quando eles puseram as mãos sobre ela e viram a perna crescer diante dos olhos. Ele disse-me que sabia ser difícil de acreditar, mas que tinha acontecido mesmo. Agora que penso, espanco-me na barriga como não me ocorreu em perguntar se não agarraram a perna errada, pois só vejo uma que possa crescer.

Comecei a aperceber-me que este culto era lunático. Começa-me a falar da sua fé em Deus e de como faria tudo por ele. Isto passou-se na semana de Novembro de 2015 em que decorreram os ataques terroristas em França, por isso estávamos todos numa semana de ânimos quentes. Eu comecei com a história da perna a dizer que não acreditava mas que respeitava a crença. Não foi reciproco. Ele disse que eu era pecador, ao qual eu discordei pois eu não fazia mal a ninguém e que, aliás, até ajudava os meus vizinhos. O que é mentira, tenho vizinhança que desprezo por usarem o meu estendal e a minha mangueira sem autorização. Mas dei-lhe a oportunidade de me convencer, sempre sem sucesso. Na sua raiva, disse que eu iria para o inferno se não mudasse, ao que eu respondi: "eh, pelo menos é mais quentinho do que a Dinamarca". Ele riu-se durante um segundo e depressa o seu riso tornou-se em ódio. Eu disse que tinha de ir andando e ele responde-me que era capaz de morrer pela sua fé.

Os olhos dele, a acreditar naquela frase, intimidaram. Não pela confiança, mas por sentir no olhar o quão perdido e desesperado ele estava. Parecia um olhar de drogado mas não acho que assim estivesse. Só vi um vazio. Senti duas coisas: senti que tinha gozado com a cara da morte, pois aquela frase e o casaco um bocado gordo obrigaram-me a fazer equações instintivas, as mesmas que me teriam feito falta nos exames do GAV, e senti sinceramente alguma preocupação com a universidade que lhe indiquei, até porque eu tinha deixado na sala de grupo a minha ficha tripla do Ikea e aquilo dava-me jeito.

Quanto ao trabalho, foi só entregar e ir embora, se bem que tive a sorte de os meus óculos embaciarem-se enquanto eu me apresentava. Foi como se estivessem a falar com alguém de óculos escuros mas com a coolness de Charlie Brown. Eventualmente retirei os óculos e continuei, admitindo que o que me estava a acontecer era uma parvoíce.

Ainda tentei no hotel ao pé do aeroporto, sempre com a esperança de o saber falar brasileiro me salvar, mas foi em vão. Ao passar de novo a ponte, nunca tinha sentido tanto vento a ir contra mim. À semelhança de DiCaprio em Titanic, também eu sentia que eram lâminas a passarem por mim, a ponto de o frio me queimar as bochechas, mas ao contrário de DiCaprio, eu não morri congelado no fundo do mar. Não literalmente.

Neste mês eu cheguei à conclusão que tinha de me admitir estar sobre depressão. Algo que eu nunca tinha feito só por estar muito, muito triste, na semelhança das pessoas que têm dores de cabeça muito fortes e dizem imediatamente que estão com enxaquecas. Enxaquecas eu tive uma vez, em miúdo, em que gritava que queria morrer por não aguentar mais. Tudo o resto vai lá com ibuprofeno e a doce voz de George Carlin.

Sabem quando morre a mulher e o homem morre pouco tempo depois, apesar de ter sido uma besta para ela e não ter ajudado nada em casa nem para impressionar os pais dela, muitas vezes chegando com um perfume diferente do que quando saiu, que era nenhum senão o seu suor de três noites com a mesma manga cava? Era como eu me sentia, menos o perfume de outra mulher. Ou de outro homem, se quer. Aqui, eu deixei de comer, deixei de sair de casa, deixei de sair da cama. Não desistindo de procurar trabalho, mas tudo me parecia inútil sem ela. Deixei de comer os cachorros do føtex porque levava-lhe sempre se não fossemos juntos, deixei de ir à biblioteca estudar porque o ambiente me recordava de quando íamos trabalhar juntos até à hora de jantar, e todas as ruas e autocarros me recordavam dos nossos passeios. Também os seus pertences estavam intactos. Não mexi em nada nem se quer a sua toalha de banho pendurada, como se ela ainda fizesse parte do meu dia a dia. Deixar de a ter na casa que tanto nos custou conseguir, fez-me perder o gosto por ela, e por tudo, sinceramente. Também não me ajudou a Sandra ter saído; além da boa pessoa que é, esteve presente desde o início daquela casa. O problema não era eu estar sozinho, mas estar acompanhado por outra pessoa que não elas, e sentia-me algo territorial em ter um estranho no espaço que foi de outra pessoa que gostava. O meu segredo de sobrevivência acabou por ser perceber isso e desligar-me cada vez mais daquela casa e do sonho que era tê-la.

 A minha alimentação passou a ser não mais do que três a seis maçãs por dia, e muito chá e café. Uma vez ou outra, convencia-me ao luxo de comprar uma tablete de chocolate não pela guloseima mas para sentir algum açúcar no cérebro, afinal eu ainda estava na universidade e tinha de, bem, funcionar. Também comprava pacotes de bolacha Maria e fazia-as render tanto quanto pudesse. As refeições que eu fizesse tinham de durar, no mínimo, três-quatro dias, falando de doses muito reduzidas de comida. Eu comprava o que fosse o mais barato, excepto uma embalagem de esparguete e salsichas, tudo do Rema1000 (pronúncia-se reumatologia), pois que Deus me perdoe mas coma ele se quiser, sabia a merda. Que ninguém volte a chamar McDonald's comida de plástico, aquelas salsichas sim sabiam a Dartacão em PVC.

Onde quer que vamos, as bolachas Maria acompanham-nos

O meu carregamento português foi o que me valeu em tempos difíceis


A minha nutrição para o trabalho universitário


Pelas ruas, eu colhia as latas de refrigerante e cerveja do chão pois era possível trocar por dinheiro. Não muito, mas ajudava que bastasse. O que me enchia o estômago era realmente litros e litros de café. Cheguei a perder 10Kg em menos de um mês, com a minha namorada a dizer pelo Skype que eu estava com um aspecto muito desidratado, ao qual mantive e fui piorando nos próximos meses.
Algo que eu muito fazia por Aalborg era ouvir música com fones bons, deliciado por um país onde não era assaltado por não existir linha de Sintra, e Janeiro marcou-me também pelo lançamento do último álbum de David Bowie. Até à data em que escrevo este texto, cerca de um ano depois dos meus eventos, ainda não escutei o álbum completo. Ouvi a Blackstar, mas prendi-me na Lazarus. Lazarus foi a minha banda sonora nos meus últimos tempos em Aalborg, ouvindo-a todos os dias. Ligava-se muito ao meu desespero na altura mas também aos meus sonhos e esperanças. Meditava a minha ilusão e levava-me à terra para assentar. Ainda hoje quando a ouço é a melhor forma de me recordar da sensação de caminhar pelas ruas frias.

Houve um momento em que achei que a minha sorte tinha mudado. A grande vantagem de eu ser um pulha mal educado que não cumprimenta ninguém, torna-me muito bom a encontrar dinheiro na rua, mesmo na Dinamarca. Encontrei 150Kr em notas, mas a minha grande surpresa foi ter encontrado num dia particularmente chuvoso uma nota dobrada de 1000Kr, o que me daria para pagar praticamente a renda inteira. Meti no bolso e sequei-a enquanto estava na biblioteca, empolgado mas de pé atrás. E tinha motivos para desconfiar, ao abrir a nota, tinha uma enorme barra branca no meio. Era falsa. Caramba, Deus. Podes ficar com o troco.

No final de Janeiro, apresentei o nosso trabalho de grupo. Depois de tudo o que me estava a acontecer, consegui passar o semestre. Cheguei a casa cheio de sono, mas fui ainda fritar uma espécie de tortilha de batata quando o Leonidas se aproxima e agradece-me por tudo mas iria cerca de uma semana mais cedo. Na altura fiquei feliz por significar que poderia dormir à tarde e descansar como não fazia há um mês, apesar de notar que ele estava a ir embora com uma rapariga diferente. Mas pelo menos teria paz por uns dias, um momento em que podia dormir sem escutar sexo emigrante.

Pelo menos até Fevereiro.













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