20 January 2017

Episódio 09 | A Lei de Murphy | Ou: E se a cotovia não cantar



Eu tinha previamente desabafado com o grupo da universidade que eu seria o único que gostava de manter o grupo. Não éramos um grupo perfeito e mesmo tendo membros interessantíssimos, não funcionávamos muito bem. Mas alguns deles estavam comigo desde o inicio e foram as primeiras pessoas que conheci e a quem me dei a conhecer na Dinamarca; que não fossem portugueses. Foi também com quem muito desabafei a minha experiência não só de estar ali mas de saber que viria a ser pai. Eu gostava do grupo apesar do disfuncional que podíamos ser. E honestamente, eu não era um membro valioso para o grupo. O meu único valor foi na componente multimédia e nas apresentações de grupo nos auditórios. Mas eu entendia o porquê de não quererem continuar. Uns estavam chateados, outros estavam desejosos de trabalhar com outras pessoas e outros simplesmente deixaram de acreditar que o grupo os pudesse levar mais longe, o que era compreensível.

O que eu temia era o dia 1 de Fevereiro, o dia em que teríamos de formar novos grupos. Éramos deixados à solta numa sala e tal como gotas de água num vidro, umas iam se juntando e ficando mais gordas. Eu fiquei numa parede sem escolher. Não conhecia mais do que de vista, e juntaram-se todos mais depressa do que eu esperava. Nisto, o L levanta-se, já tendo combinado que ficava com o Kasper (um dos milhares), e olhou para mim no canto e perguntou se eu queria juntar-me. Fiquei surpreendido e incrivelmente grato. Fomos compondo o grupo e lá estávamos nós na nossa sala. Éramos todos esquisitos, eu incluído. Imaginem o grupo de Stranger Things mas sendo todos o miúdo desdentado. O grupo estava interessante e havia diversidade competente. Tínhamos a organizadora, o amante de matemática, o designer, o programador, o gajo dos vídeos, o que fazia tudo e o que sofria de Aspergers. Foi a primeira vez que conheci alguém com esta doença e posso dizer que tinha das melhores mentes. O seu raciocínio era fantástico e foi uma ajuda crucial ao grupo. Se não soubesse, aprendia, e aprendia rápido. O único problema era só conseguir trabalhar metade do nosso tempo por questões de exaustão mental, mas talvez trabalhasse melhor. O L depressa aprendeu a aproveitar os seus momentos de energia e não se importou que ele trabalhasse em casa. Aliás, a dada altura todos trabalhámos em casa ou às horas que quiséssemos na universidade. Claro que isso gerou o problema de muitos deixarem de trabalhar ou se quer falar.

Eu disse no inicio o que eu temia: além de estar com depressão, não sabia se ia acabar o semestre por ter de voltar para Portugal. Mas iria sempre trabalhar até ao final mesmo que fosse embora. O L respeitou isso. A verdade é que muitos foram embora, não só do grupo anterior como do actual, e acabou por ser um grupo de 3 pessoas a trabalhar, em 8.

Ainda hoje falo com um dos meus colegas do primeiro grupo, o Anders, que me
deu a conhecer muito sobre a Dinamarca. Sempre tive uma enorme estima por ele.


Lá por casa, após saber que diziam à minha esposa que eu não voltaria para ela e para o bebé, e que já estaria com outra, decidi a escolha mais sensata para tranquilizar a imprensa cor de rosa: quis partilhar a casa com uma rapariga. Chamemos-lhe Anniehall, porque não é bem mas chega a ser. Era uma rapariga porreira para se ter como roommate até porque cozinhava muito bem. Provei pouco mas não por falta de oferta, foi amável a oferecer-me os ingredientes que tinha e doses das suas refeições. Talvez demais. Tirava um pouco e deixava a travessa dizendo que eu podia tirar também. Eu retirava a dose semelhante à dela a julgar que viria a guardar o resto mas ficava sempre surpreendida por ter sobrado tanto, como se não lembrasse de ter cozinhado e mandava para o lixo. Era suposto eu comer tudo? Nunca saberei, mas talvez fosse uma indirecta pois ela só fazia pratos vegetarianos. Fez-me um prato de brócolos, queijo e batata no forno. Era bom. O queijo e as batatas, pelo menos. Os brócolos podiam ir para o inferno junto do Ricardo Salgado e o Correio da Manhã, tudo com existências abomináveis. Eu tentei, achei que o queijo talvez ajudasse, mas aquele brócolo que demorei uma semana a degustar, empurrando esófago abaixo com um piaçaba, sabia precisamente a Correio da Manhã. Outro prato foi uma espécie de torta de ovo com o iogurte mais amargo que já provei. Era bom, apesar de ser discutível a necessidade do iogurte. Mas os seus cozinhados perfumavam bem a casa e, como digo, cozinhava bem, apesar dos meus gostos diferentes. O queijo búlgaro parece-me ser óptico para cozinhados.

O seu único defeito era deixar os cabelos no ralo do chuveiro para eu apanhar e por eu deixar o seu namorado ficar de tempos em tempos, as relações sexuais emigrantes também aconteciam frequentemente com a diferença de esta vez ouvir mais o rapaz, o que talvez diga muito sobre as performances. Quando eles praticavam a abstinência, eram os vizinhos de cima que iniciavam a última ceia. Sempre suspeitei se era realmente isso que se passava em cima. A primeira vez que ouvi o barulho fui espreitar lá fora ver o que se passava, ainda com os meus reflexos de viver no Cacém. O que me intrigava era ser um som constante do que parecia ser uma velhinha numa cadeira de baloiço que precisava de óleo (a julgar pelo barulho, não sei se era a cadeira, a velhinha ou os dois a precisar de óleo), mas não fazia sentido com o horário a que ouvia. Só podia ser sexo dinamarquês.

As minhas noites eram preenchidas por esta imagem



Por alguma razão a minha estadia na Dinamarca passou por ouvir outras pessoas a fazerem sexo à minha volta. De facto, era um país frio, mas as casas eram bem isoladas e mais quentes do que o nosso Verão, não se justificava tanto ponto de embraiagem. Ninguém estudava naquele país?

Era suposto a Anniehall ficar até Agosto mas como já descrevi anteriormente, cada dia Dinamarquês corresponde a 4 semanas portuguesas. Ou 6, quando chegam as contas para pagar. Eventualmente tive que me debruçar sobre a realidade de que podia ter de sair mais cedo e fiz questão de que ela estivesse preparada para o pior cenário. Mas não sem antes eu tentar o meu trunfo: o Pitstop.

O Pitstop era o café ao lado do Danhostel, onde todos os refugiados Europeus passavam os seus primeiros anos. O Pitstop era popular entre os sobreviventes do Danhostel por dois motivos: tinha internet e era o único estabelecimento à volta num raio de 800Km. Ir ao centro da cidade desde o Danhostel pela primeira vez assemelhava-se à caminhada até Fátima mas com o dinheiro a ser melhor empregue. Os donos do Pitstop conheciam-nos [temporariamente] por irmos lá todos os dias e ficávamos tão em casa que já levávamos fichas triplas para que todos os portáteis tivessem uma oportunidade. Dentro do nosso grupo de sobreviventes, quando ainda nenhum de nós tinha casa, existia um romeno que me esqueci do nome. Chamemos-lhe Pantufa pois era gordo e fofinho. Todos gostavam do Pantufa e era realmente das personalidades mais simpáticas e humildes que tinha conhecido. Não demorou muito para que os donos do Pitstop lhe arranjassem um contacto de alguém que procurava por um trabalhador que arregaçasse as mangas para o que fosse. Foi uma história que depressa virou lenda, uma história em que nós contávamos uns aos outros para dar esperança à frente da fogueira. O destino do Pantufa tornou-se incerto para mim, deixei de ouvir falar dele quando descobrimos todos que este rapaz dócil e extremamente simpático era a besta mais homofóbica que pisou a Europa.

Voltar ao Pitstop depois de tantos meses trouxe-me memórias incríveis. Foi ali que tudo começou. Estava agora sentado sozinho num canto onde estive em tempos rodeado de pessoas que gostava. O cheiro daquele café era icónico para mim, incluindo a casa-de-banho pois era um palácio a comparar com o que vivíamos no Danhostel.

Também se via muito bom cinema

Um dos passatempos favoritos do Pitstop era ver a Sarah Jessica Parker a correr



Depois de beber o meu último café de 10 kr, estando já sozinho em todo o café, levantei-me e dirigi-me ao patrão, como se o fosse assaltar. Contei-lhe a minha história e perguntei se conhecia alguém que me pudesse arranjar trabalho, afinal ele conhecia tanta gente que por ali passava (era também uma casa de jogos) e eu tinha a lenda do Pantufa a dar-me esperança. Infelizmente, a esperança foi em vão. Ele não conhecia ninguém que me pudesse ajudar, mas desejou-me sorte e que não parasse de procurar. Eu agradeci-lhe e despedi-me pela última vez.

Depois fui para casa ao longo da noite a pé, no meio de neve e nevoeiro, qual D. Sebastião. Foi a primeira vez que vi tudo a preto e branco.



Não cheguei a compreender se eram luzes ou OVNIs




A procura de trabalho foi um processo, como imaginam, árduo. E apesar de ter terminado nestas imagens a preto e branco, foram inspiradas por uma outra imagem a preto e branco.

Quando a minha namorada regressou a Portugal, além de ter ido com a missão de dar a feliz notícia de que estaria presa a mim e de que afinal eu iria fazer parte dos álbuns de família, foi também fazer a sua primeira ecografia. E à distância, eu vi pela primeira vez o meu filho.




Tendo em conta o meu gosto por cinema e pelo meu trabalho na área, bem como a minha ligação genuína desde pequeno pela 7ª Arte, é poético a primeira vez que vi o meu filho ter sido em vídeo. Eu estava, na verdade, a olhar para o passado, para algo que já foi. Mas algo que foi fantástico. Embora difícil de entender como viria a ser esta criatura, as horas de contemplação pela forma que o nariz e os lábios desenhavam gerou calor em tempos gelados.

Na ecografia estava tudo bem, mas o médico além de silencioso disse para a minha namorada fazer outra ecografia para analisar o coração pois não lhe agradava. Foram momentos de preocupação assustadora mas que revelaram ser inúteis quando tivemos a opinião de uma médica mais experiente durante as seguintes ecografias, tendo dito que estava perfeitamente saudável e que o outro médico era um idiota, a bem dizer.

Esta imagem e a noção de já ter visto o meu filho fez-me dar todos os passos que consegui enquanto sozinho noutro país, e muitos desses passos foram a escutar Mockingbird de Eminem, em loop constante. Uma boa parte da letra era assustadoramente próxima da minha verdade, e apesar do triste que era, também havia motivo de coragem e força. Acompanhada por Lazarus de David Bowie, foram as músicas que ouvi sem parar diariamente e as letras que compuseram os meus sentimentos. Eu sentia-me perdido, mas com a necessidade de caminhar. Estava era a andar sem rumo e a ficar mais exausto do que realmente achava.

Até que chegou a altura de tomar uma decisão. Talvez a mais estúpida, mas certamente a mais difícil. Uma onde eu não tinha como ganhar, pelo menos por um tempo.


11 January 2017

Episódio 08 | Lazarus | Ou: Cadeiras vazias e mesas vazias





 Janeiro era dos melhores meses para arranjar trabalho pois muitos estavam fora. Certo, regressariam em meados e chegaria também em breve mais um contentor de emigrantes, mas até arranjarem casa e tratarem do cartão de identidade, eu tinha alguns meses de avanço. Ainda assim, estava num contra-relógio pois tinha de arranjar trabalho durante o pouco tempo que me restava para finalizar a animação 3D para entregar a tempo, tendo depois de me reunir com o grupo para prepararmos a apresentação do nosso projecto.

Preparei a casa tanto quanto pude para receber o novo roommate. Vou-lhe chamar Leonidas porque o seu nome é parecido mas não tem nada a ver. Visto ele não saber onde ficava a casa por nem os dinamarqueses conseguirem soletrar o nome da rua, fui ter com ele ao Nordkraft à noite, numa rua escura e sem ninguém, que é o que se quer quando se combina um encontro com um estranho.

Conhecemo-nos durante o caminho e fiquei a saber que ele só ficaria um mês para acabar o seu curso, por isso eu teria de arranjar alguém no final de Janeiro. Gostei dele, tinha uma fivela com o símbolo do Batman por isso eu sabia que era boa pessoa. Perguntou se podia usar um pouco do meu azeite e tirar um bocado de esparguete pois não trazia nada consigo para comer. O meu erro não foi ter deixado mas sim ter dito que era azeite português caseiro, da avó da minha esposa. Isto simbolizou que não viria a comprar azeite durante todo o mês. Não o censuro, o azeite dinamarquês sabe a água. Nem tudo é mau, o bacon é o ingrediente suficiente para me conquistar naquele país pois o pior bacon que tiverem, aquele todo bolorento e pisado por três tractores no meio da estrada por ter caído da carrinha de distribuição da loja Netto, esse bacon, é melhor do que o nosso bacon mais gourmet. É divinal! De resto, a nível de comida, pouco mais se aproveita.

Havia sempre pequenos prazeres de outros países, no entanto




Onde ia eu? Ah, pois, os mantimentos que colhi para o inverno estavam a gastar-se com a partilha, incluindo a pasta de dentes. Mas é por um mês, eu aguento. O que ele gastava, eu poupava para balancear. Por exemplo, ele ficava acordado durante a noite com a luz no quarto e eu ficava à luz da vela, só usava a luz para cozinhar. Por isso fiz os meus trabalhos à escuras, relembrando que a vida lá fora era igualmente escura. Foi um mês muito sombrio.

Ena, Sol!


Eu só impus a regra de não fazer barulho e de fumar lá fora. Ele respeitou a parte do tabaco. O único problema, não necessariamente do próprio, era a porta da sala/cozinha/meu quarto abrir-se com a diferença de pressão pela porta da rua aberta. Ou seja, a minha porta abria sempre que ele ia fumar durante a madrugada, e eu acordava sempre com o barulho. Pior era quando ele ia à cozinha durante a madrugada fazer café. Sabem, o conceito de uma máquina de café tem o defeito de fazer muito barulho, particularmente quando a cafeteira está repleta de calcário da água. Fez isso duas vezes, de luz acesa, comigo claramente a despertar com a situação, até eu lhe ter dito para levar a cafeteira e fazer o café que quisesse no quarto.

Sabem o que também faz muito barulho? Relações sexuais entre emigrantes.
Leonidas levou uma senhora para jantar, precisamente no meu último dia para enviar o trabalho. Estive a trabalhar enquanto ouvia uma senhora a sentir felicidades no quarto ao lado. A noite toda. Acabei por não descansar nada e sair da cama pois continuava a ouvir a senhora a gritar bingo, como se estivesse à minha frente.

No dia seguinte chamei-lhe a atenção para o barulho, não por mim mas pelos vizinhos. Ele disse que não tinha sido ele a fazer barulho, rasgando-se num sorriso lento semelhante ao Grinch. Admito, mesmo na altura, foi engraçado.
Enquanto eu trabalhava no meu projecto, e enquanto ouvia o tema do Rei Leão no quarto ao lado, eu pesquisava por trabalho. Mesmo na última noite em que me restavam poucas horas para terminar, eu percorria tudo o que era sites de emprego. A minha caixa de email depressa se encheu com este tema. É algo que felizmente aconteceu muito, receber respostas a dizer que não estavam à procura neste momento ou que simplesmente não fui aceite. Dei valor ao facto de se terem dado ao trabalho de me dizer alguma coisa sem ser com uma mensagem colada. Alguns desejaram sorte e até aconselharam. Tornei-me muito bom a vender o meu peixe e a escrever cartas de motivação, pois eu estava mesmo motivado. Era isto ou nada. Mas, nada foi.

Destaco dois pedidos de trabalho. O primeiro foi num hotel em plena Jomfru Anne Gade, onde o recepcionista levantou-se e afastou-se de mãos algo no ar como se não quisesse problemas comigo. Calhou bem, porque eu também não queria problemas com ele. Disse que não valia a pena eu entregar o meu currículo e que era melhor eu guardá-lo. Perguntei se nem para tratar da roupa suja eu servia mas disse que gostavam de ter a equipa dentro do mesmo idioma. Fui-me embora, algo ressentido. Eu percebi-me perfeitamente, não faz muito sentido fazer reunião com os empregados para dizer que vão receber o Marcelo Rebelo de Sousa por isso portem-se bem e dizer "e agora, em inglês". É uma questão de organização e conveniência. Mas foi o primeiro e único que se afastou de mim como se eu fosse nojento e que não deveria estar ali. Ainda pensei que fosse pelo meu aspecto, honestamente. Afinal, a minha barba tinha batido o record pessoal. Mas soube mais tarde que a minha amiga Elisa, a Engenheira, foi ao mesmo hotel e teve precisamente a mesma reacção. Eu conheci a Elisa em Agosto de 2015 e desde esse verão nunca a vi com barba, o que me leva a concluir que não seria esse o problema. De todas as minhas procuras, esta foi a que doeu mais. Por norma bastava eu entrar e deixar o currículo após uma breve apresentação, mas esta recusa abateu-me um pouco.

A segunda história que destaco não foi tanto o pedido por trabalho em si, mas momentos antes. Ainda estava a viver com a minha esposa e com a Sandra, quando fui à apelidada foodstreet procurar por trabalho até ser abordado por um indiano. Acho que era indiano. Parecia-se com um. Como eu, que parecia um espanhol. Ele perguntou-me se havia uma universidade ali por perto, ao qual respondi que sim, e disse-me o seu nome mas a meio das primeiras sílabas eu esqueci-me. Parecia bom rapaz e eu habituado a um povo simpático e a precisar de ajuda, escutei o que tinha para me dizer de bom agrado. Falou-me de um grupo de amigos e do que me pareceu ser uma espécie de convite. Este culto realizava milagres. Ao principio parecia semi-credível, até dizer que um rapaz que tinha muitas dores numa perna mais curta que a outra ficou curado quando eles puseram as mãos sobre ela e viram a perna crescer diante dos olhos. Ele disse-me que sabia ser difícil de acreditar, mas que tinha acontecido mesmo. Agora que penso, espanco-me na barriga como não me ocorreu em perguntar se não agarraram a perna errada, pois só vejo uma que possa crescer.

Comecei a aperceber-me que este culto era lunático. Começa-me a falar da sua fé em Deus e de como faria tudo por ele. Isto passou-se na semana de Novembro de 2015 em que decorreram os ataques terroristas em França, por isso estávamos todos numa semana de ânimos quentes. Eu comecei com a história da perna a dizer que não acreditava mas que respeitava a crença. Não foi reciproco. Ele disse que eu era pecador, ao qual eu discordei pois eu não fazia mal a ninguém e que, aliás, até ajudava os meus vizinhos. O que é mentira, tenho vizinhança que desprezo por usarem o meu estendal e a minha mangueira sem autorização. Mas dei-lhe a oportunidade de me convencer, sempre sem sucesso. Na sua raiva, disse que eu iria para o inferno se não mudasse, ao que eu respondi: "eh, pelo menos é mais quentinho do que a Dinamarca". Ele riu-se durante um segundo e depressa o seu riso tornou-se em ódio. Eu disse que tinha de ir andando e ele responde-me que era capaz de morrer pela sua fé.

Os olhos dele, a acreditar naquela frase, intimidaram. Não pela confiança, mas por sentir no olhar o quão perdido e desesperado ele estava. Parecia um olhar de drogado mas não acho que assim estivesse. Só vi um vazio. Senti duas coisas: senti que tinha gozado com a cara da morte, pois aquela frase e o casaco um bocado gordo obrigaram-me a fazer equações instintivas, as mesmas que me teriam feito falta nos exames do GAV, e senti sinceramente alguma preocupação com a universidade que lhe indiquei, até porque eu tinha deixado na sala de grupo a minha ficha tripla do Ikea e aquilo dava-me jeito.

Quanto ao trabalho, foi só entregar e ir embora, se bem que tive a sorte de os meus óculos embaciarem-se enquanto eu me apresentava. Foi como se estivessem a falar com alguém de óculos escuros mas com a coolness de Charlie Brown. Eventualmente retirei os óculos e continuei, admitindo que o que me estava a acontecer era uma parvoíce.

Ainda tentei no hotel ao pé do aeroporto, sempre com a esperança de o saber falar brasileiro me salvar, mas foi em vão. Ao passar de novo a ponte, nunca tinha sentido tanto vento a ir contra mim. À semelhança de DiCaprio em Titanic, também eu sentia que eram lâminas a passarem por mim, a ponto de o frio me queimar as bochechas, mas ao contrário de DiCaprio, eu não morri congelado no fundo do mar. Não literalmente.

Neste mês eu cheguei à conclusão que tinha de me admitir estar sobre depressão. Algo que eu nunca tinha feito só por estar muito, muito triste, na semelhança das pessoas que têm dores de cabeça muito fortes e dizem imediatamente que estão com enxaquecas. Enxaquecas eu tive uma vez, em miúdo, em que gritava que queria morrer por não aguentar mais. Tudo o resto vai lá com ibuprofeno e a doce voz de George Carlin.

Sabem quando morre a mulher e o homem morre pouco tempo depois, apesar de ter sido uma besta para ela e não ter ajudado nada em casa nem para impressionar os pais dela, muitas vezes chegando com um perfume diferente do que quando saiu, que era nenhum senão o seu suor de três noites com a mesma manga cava? Era como eu me sentia, menos o perfume de outra mulher. Ou de outro homem, se quer. Aqui, eu deixei de comer, deixei de sair de casa, deixei de sair da cama. Não desistindo de procurar trabalho, mas tudo me parecia inútil sem ela. Deixei de comer os cachorros do føtex porque levava-lhe sempre se não fossemos juntos, deixei de ir à biblioteca estudar porque o ambiente me recordava de quando íamos trabalhar juntos até à hora de jantar, e todas as ruas e autocarros me recordavam dos nossos passeios. Também os seus pertences estavam intactos. Não mexi em nada nem se quer a sua toalha de banho pendurada, como se ela ainda fizesse parte do meu dia a dia. Deixar de a ter na casa que tanto nos custou conseguir, fez-me perder o gosto por ela, e por tudo, sinceramente. Também não me ajudou a Sandra ter saído; além da boa pessoa que é, esteve presente desde o início daquela casa. O problema não era eu estar sozinho, mas estar acompanhado por outra pessoa que não elas, e sentia-me algo territorial em ter um estranho no espaço que foi de outra pessoa que gostava. O meu segredo de sobrevivência acabou por ser perceber isso e desligar-me cada vez mais daquela casa e do sonho que era tê-la.

 A minha alimentação passou a ser não mais do que três a seis maçãs por dia, e muito chá e café. Uma vez ou outra, convencia-me ao luxo de comprar uma tablete de chocolate não pela guloseima mas para sentir algum açúcar no cérebro, afinal eu ainda estava na universidade e tinha de, bem, funcionar. Também comprava pacotes de bolacha Maria e fazia-as render tanto quanto pudesse. As refeições que eu fizesse tinham de durar, no mínimo, três-quatro dias, falando de doses muito reduzidas de comida. Eu comprava o que fosse o mais barato, excepto uma embalagem de esparguete e salsichas, tudo do Rema1000 (pronúncia-se reumatologia), pois que Deus me perdoe mas coma ele se quiser, sabia a merda. Que ninguém volte a chamar McDonald's comida de plástico, aquelas salsichas sim sabiam a Dartacão em PVC.

Onde quer que vamos, as bolachas Maria acompanham-nos

O meu carregamento português foi o que me valeu em tempos difíceis


A minha nutrição para o trabalho universitário


Pelas ruas, eu colhia as latas de refrigerante e cerveja do chão pois era possível trocar por dinheiro. Não muito, mas ajudava que bastasse. O que me enchia o estômago era realmente litros e litros de café. Cheguei a perder 10Kg em menos de um mês, com a minha namorada a dizer pelo Skype que eu estava com um aspecto muito desidratado, ao qual mantive e fui piorando nos próximos meses.
Algo que eu muito fazia por Aalborg era ouvir música com fones bons, deliciado por um país onde não era assaltado por não existir linha de Sintra, e Janeiro marcou-me também pelo lançamento do último álbum de David Bowie. Até à data em que escrevo este texto, cerca de um ano depois dos meus eventos, ainda não escutei o álbum completo. Ouvi a Blackstar, mas prendi-me na Lazarus. Lazarus foi a minha banda sonora nos meus últimos tempos em Aalborg, ouvindo-a todos os dias. Ligava-se muito ao meu desespero na altura mas também aos meus sonhos e esperanças. Meditava a minha ilusão e levava-me à terra para assentar. Ainda hoje quando a ouço é a melhor forma de me recordar da sensação de caminhar pelas ruas frias.

Houve um momento em que achei que a minha sorte tinha mudado. A grande vantagem de eu ser um pulha mal educado que não cumprimenta ninguém, torna-me muito bom a encontrar dinheiro na rua, mesmo na Dinamarca. Encontrei 150Kr em notas, mas a minha grande surpresa foi ter encontrado num dia particularmente chuvoso uma nota dobrada de 1000Kr, o que me daria para pagar praticamente a renda inteira. Meti no bolso e sequei-a enquanto estava na biblioteca, empolgado mas de pé atrás. E tinha motivos para desconfiar, ao abrir a nota, tinha uma enorme barra branca no meio. Era falsa. Caramba, Deus. Podes ficar com o troco.

No final de Janeiro, apresentei o nosso trabalho de grupo. Depois de tudo o que me estava a acontecer, consegui passar o semestre. Cheguei a casa cheio de sono, mas fui ainda fritar uma espécie de tortilha de batata quando o Leonidas se aproxima e agradece-me por tudo mas iria cerca de uma semana mais cedo. Na altura fiquei feliz por significar que poderia dormir à tarde e descansar como não fazia há um mês, apesar de notar que ele estava a ir embora com uma rapariga diferente. Mas pelo menos teria paz por uns dias, um momento em que podia dormir sem escutar sexo emigrante.

Pelo menos até Fevereiro.













01 January 2017

Episódio 07 | A Cura para o Homem Comum| Ou: Eu vivo, eu morro, eu vivo outra vez!




Passámos a noite abraçados, comigo a agarrar-lhe a barriga. Um conforto que não voltaríamos a sentir durante muito tempo.

Andámos de autocarro pela última vez, a carregar as malas meio cheias, com vontade de trazer mais do que levar, e despedimo-nos no aeroporto. Aqui, pensámos que estaríamos a uma distância de tempo, tínhamos o bilhete de volta para Janeiro. Mas não deixou de ser uma despedida num tempo que atingiu o pico da incerteza. O que seria de nós três? Depois de tudo, o que nos resta?

Um abraço, e um beijo. Vi-a a passar a segurança e perdi-a de vista. Lá fora, nevou um pouco enquanto estávamos no aeroporto. Não foi nada de especial, mas não deixou de haver pequenos flocos brancos no chão, fazendo-me pensar que ela perdeu este momento, e tantos outros que viriam. Esperei 10 minutos pelo autocarro, sendo que faltavam mais 10, no primeiro frio a sério em que senti que a minha roupa não era suficiente. Ela fez-me prometer, como sempre, que eu voltaria para casa de autocarro. Também como sempre, segui as pisadas de John Matrix, e menti. Fui a pé do aeroporto até casa, durante um extenso frio numa caminhada de uma hora e meia. Creio que nada me aqueceria naquela tarde. Não chorei pelo caminho, mas senti uma tristeza profunda. O autocarro passou por mim entretanto, enquanto eu prosseguia. Mas nada melhor do que andar a pé para reflectir e descontrair, e muito andava eu a pé por Aalborg ao som de Bob Dylan. Isto numa época em que era impensável ele ganhar um Nobel! Aliás, eu nem sabia o que era um Nobel nesta altura, sempre julguei ser uma marca de dinamite. Adiante; atravessei a ponte e contemplei por instantes o rio que dividia Aalborg, sendo a zona com os ventos mais gelados.

 Felizmente, ela chegou bem a Lisboa com um familiar que a esperava e teve, segundo me conta, uma viagem hilariante. Dessas viagens ainda houve mais umas quantas, todas elas um fartote. Eram como viagens de taxistas que insistem em nos vender a ideia até dizermos que concordamos com o ponto de vista apesar de não fazer sentido a quem seja um ser humano.

 No lado frio da Terra, Sandra, a Engenheira das Ciências, aguardava pelo namorado que chegava naquela semana vindo do Reino Unido. Ele era Carlos, o Engenheiro Britânico. Juntos, levámos aos poucos os pertences da Sandra por Aalborg fora até a sua nova casa. Mas desenganem-se que levámos só a mobília da minha casa; não, a Sandra adquiriu o monopólio em Aalborg, fomos buscar mobília a tudo o que era casa pois ela tinha as cores todas do bairro incluindo o Rossio com Hotel. Durante o caminho, Carlos, o Principe Engenheiro, explicou-me como conquistar mulheres. A Sandra desaprovou de alguns conceitos, mas o que percebe ela de mulheres? Posso dizer que neste momento eu sou um tipo que pode ter toda e qualquer mulher que queira graças ao que o Carlos me ensinou em pouco tempo. É o que explica a Alicia Vikander vir jantar tantas vezes lá a casa. A minha esposa chateou-se ao inicio com o meu poder mas depressa agradeceu ao Carlos por eu fazer com que a Beyoncé passeie com ela no Amoreiras aos sábados.

Mas há mais: por eu ter sido das 50 pessoas com quem ele falou, deu-me o mesmo conselho duas vezes e ainda ganhei um trem de cozinha e uma balança com ralador para batatas onduladas. Sabem o que toda esta aprendizagem significa. Ele foi o Will Smith e eu fui o Kevin James.

As semelhanças são inquestionáveis



Tive o belo prazer de ser convidado por eles para um jantar no Sunset Boulevard, que ficava precisamente em Boulevarden. Óbvio que abusei da piada de combinar sempre os encontros em "Boulevarden of Broken Dreams". A piada não é engraçada agora e também não teve sucesso nenhuma das vezes. Mas foi neste estabelecimento que Carlos, o Rei do Kuduro, demonstrou mais uma habilidade: sabe falar Dinamarquês. Mas não é só dizer vand uden brus, é falar mesmo com precisão o que pretende em cada pedido. O meu queixo caiu, a Sandra apanhou-o com um "olha, isto é teu?" e eu encaixei-o ao contrário. Haverá algo que este Homem não consiga?

Sim.

Arranjar trabalho na Dinamarca.

Carlos, o Mestre das Magias Negras, contou como passou o seu tempo a entregar milhares de currículos sem sucesso. Não foram situações de "Boa tarde, olhe, eu tenho o 12º e gostava de vir trabalhar para aqui nesta equipa bem disposta e dinâmica porque amo o que esta empresa acredita e não porque preciso dinheiro a ponto de já ter perguntado também à concorrência ao lado" "Lamentamos mas procuramos licenciados para dobrar meias". Não, o que se passou foi mais: "Boa tarde, eu tenho mais experiência do que vocês e às sextas à tarde eu ajudo a NASA a preparar a missão a Marte porque aqueles gajos ainda não perceberam que o segredo está no motor das FAMELs" "Lamentamos mas nós procuramos ignorantes que falem a nossa língua" "Mas eu também sei falar a vossa língua" "Sim mas não é ignorante e não tem o nosso sotaquezinho do norte de Juthland, Karago!"

Carlos, o MasterChef™, contou ao pormenor um episódio em que ele tinha o dobro das qualificações e como o entrevistador arranjava as desculpas todas para o porquê de ele não ser aceite, dizendo que eles trabalhavam com certo material, o Carlos a dizer que também trabalhava com esse material, eles dizendo que "sim, mas" trabalham com aquele material num contexto especifico, o Carlos a dizer que já trabalhou nesse contexto e que esse material não é apropriado, devia ser outro que é o usado habitualmente pois, curiosamente, tem a diferença de, engraçado, funcionar; e por aí adiante sempre com "sim, mas..."

Acabou por enviar 3 currículos para o Reino Unido, teve uma entrevista e foi aceite de imediato e desde então está por lá a conquistar os impérios ingleses. A conclusão tende muito a desviar-se para o preconceito pelo emigrante. A desculpa é que não falamos dinamarquês, ao qual temos aulas, mas quando são apanhados pela surpresa de dinamarquês não ser um problema, arranjam desculpas. Isto não é uma realidade em toda a Dinamarca, mas Aalborg, uma pequena cidade de estudantes, não estava preparada para lidar com tantos de nós, e o Carlos não esteve no meu ano de records.

Senti-me muito motivado enquanto bebia o meu Mocha Branco.

O fim de ano aproximava-se e eu não tinha vontade nenhuma de o celebrar. E por muito tempo foi essa a minha ideia, de ficar em casa. Em minha defesa, queria e tinha mesmo que continuar um trabalho para apresentar depois das férias, em meados de Janeiro. Mas Sandra, a conselheira de Emily Deschannel, não permitiu que eu tivesse escolha. Aparentemente a minha esposa pediu-lhe que não me deixasse suicidar, porque cuidar de um bebé sozinho é divertido até termos de meter olho em duas panelas ao mesmo tempo. Alguma coisa há-de bolsar. Aliás, recordo-me de não pensar em "não me apetece", tinha totalmente entranhado em "passar o fim de ano com desconhecidos e gostar", de tal era o poder de persuasão da Sandra.

E, verdade a ser escrita, gostei de passar com estranhos.

Além da Sandra e de Carlos, o Filantropo, conhecia a Cátia, a Engenheira das Ciências e a Francesca, a Engenheira das Ciências (decorria muita ciência por Aalborg). Os restantes companheiros fui conhecendo naquela noite.

Eu sou sempre o tipo ao lado do frigorífico que não fala com ninguém e tem medo de pedir um copo de água não vá levar uma tareia pela ousadia, mas senti-me confortável mais depressa do que habitual. Tudo bem que houve álcool com os jogos de shots, mas não terá sido isso. O companheirismo de estudantes refugiados é algo especial. Conhecemo-nos mal, mas somos todos primos distantes. O que terá ajudado mais do que o álcool foi ao invés de me dizerem: "então, não dizes nada?" ou o sempre fantástico "bem, estou farto de te ouvir" para que eu responda: "concordo com o vosso tema pessoal que apanhei a meio e leva-me a crer que a vossa mãe é uma embriagada que vai demasiado ao talho quando está a fechar" "mas não estávamos a falar da minha mãe" "eu sei"; deram-se ao trabalho de realmente perguntar pelos meus interesses e objectivos. 

Imagine-se!

Carlos, o Doutor do Amor, preparou o jantar para todos, como um bom português que se preze. Eu cortei os alhos, o que fez toda a diferença na confecção do prato. Depois da barriga cheia, jogámos às cartas com regras tão complicadas que só depois de bêbados é que fizeram sentido. Lembro-me de um jogo em que cada um tinha de dizer rápido uma cor e quem repetisse perdia. Quem ganhasse, não ganhava nada, nem dignidade sobre o outro. E lá estávamos nós:

Orange

Green

Blue

Silver

Yellow

Cor de burro quando foge

Quando disse isto, todos os 4 portugueses se riram. Os restantes estrangeiros compreenderam melhor o nosso ranking na Europa.

Mas a meia noite aproximava-se como as ciganas à entrada do Santa Maria. Era hora de corrermos até o ponto mais alto de Aalborg e assistirmos ao, a principio, segundo melhor espectáculo de fogo de artificio que assisti. Depressa me apressei ao Facebook para avisar os meus disciplos portugueses: "já estou em 2016. É uma armadilha, não passem o ano, isto não vai ser melhor!"



Até que aconteceu.



À semelhança de Alicante, qualquer um pode comprar uma caixa de foguetes e lançá-los. Acontece que uma caixa de foguetes no outro lado da rua tombou e os foguetes foram lançados na horizontal. Um senhor que passava de bicicleta levou com a maior parte dos foguetes no meio da estrada. Ver o homem continuar a andar de bicicleta no meio das explosões coloridas foi das situações mais épicas que assisti, apesar da sua cara de "eh, mais uma segunda-feira". Depois, assistimos aos foguetes a virem na nossa direcção.

Sabem a cena do filme Prometheus em que a personagem corre mantendo o trajecto da nave em forma de ferradura a cair, connosco a pensar "sua parva, corre para o lado e safas-te"? Bem, não só essa cena é realista como nós fomos ainda mais estúpidos. Decidimos continuar em direcção a um penhasco. Mais, ao contrário de Homer Simpson, nós sabíamos que era um penhasco sem salto possível. 


Mas não importou pois um dos foguetes veio a caminho das minhas pernas. Pensei, em nano-segundos, "já fui". Parei, tapei os ouvidos (vã esperança de sobreviver e ter algo que se aproveitasse) e aceitei o meu destino. Alguns viram, incluindo Carlos, o Almirante dos Sete Mares, que até hoje não se esquece de ver um foguete explodir nas minhas gónadas. Eu também não me esqueço, garanto.

Eu morri.

Dei por mim à espera da barca do esqueleto que me levou a Deus. Como eu suspeitei, Deus é uma Mulher e chama-se Helen Mirren.

"Sra. Deusa Helen Mirren"

"Por favor, trata-me por Cate Blanchett"

"Certo. Olhe, eu estou mesmo morto?"

"Tás mas já te tiro daqui, isto tá tudo uma grande confusão porque estou a preparar o 2016 que vai ser de morte. É só papéis, só burocracia até para morrerem."

"Como assim?"

"Quero ver se trago mais umas quantas pessoas talentosas para aqui. Estou aborrecida destas celebridades, até agora só não me cansei do John Belushi. Por isso, eu, Tilda Swinton, ordeno que regresses à Terra"

E assim, renasci no meio das cores intensas de forma maravilhosa, não longe de Tim Curry em Rocky Horror Picture Show. Apesar de ter tido uma morte muito épica, só me arrependo de não lhes ter dito "Witness me!". Infelizmente, sei que é algo que não conseguirei recriar com tamanha perfeição. Cada um rebentou uma pequena bomba de confetis que trouxemos da casa da Cátia, excepto eu que decidi guardar a minha como lembrança. Despedi-me das pessoas, algumas pela última vez, e fui para casa, ainda com as virilhas quentes. Eu ainda viria a estar com mais alguns amigos ao longo dos próximos meses, mas o Carlos tinha que regressar para os convencer que o Brexit é uma parvoíce. A serem bem vistas as coisas, não é que tenha passado muito tempo com ele ou falado muito, mas foi o suficiente para ser uma recordação memorável e sentir companheirismo que muita falta me fazia.

Passei a noite sozinho em casa pela primeira vez. Ainda deu para falar com a minha esposa, estando já os dois bastante cansados. Contei-lhe como me diverti, desejei-lhe um bom ano de 2016 e um feliz 3 anos de namoro, pois foi numa passagem de ano que começámos isto de pregar partidas às famílias.

E assim, Janeiro começou. Tinha de arranjar alguém estranho lá para casa para substituir a Sandra e ajudar-me com a renda. Mas ainda tinha esperança de a minha mulher regressar dentro de poucos dias.

Foi em Janeiro que começou a nevar, aos poucos. E marcou aquele viria a ser, até à data, o mês mais difícil da minha vida.