"Hoje é o dia. Estás pronto? Estamos todos?"
Um homem muito sábio, o tio de todos nós, disse-me uma vez algo que eu já sabia: " não relembres a uma mulher como foi o parto". Elas lembram-se de como lhes custou, mas há hormonas que fazem esquecer naturalmente uma boa parte de como foi. Segundo aprendi em Biologia, a ideia é não traumatizar, é quererem passar pelo processo outra vez (à excepção da parte dos sogros). Não é que só se lembrem da parte em que receberam flores, mas o corpo tenta ver o lado mais positivo fazendo pensar mais como foi ter o bebé no colo e menos como foi a enorme vontade de dizer asneiras. Tudo o que as hormonas do homem fazem é esquecer de quanto pagou para deixar o carro no parque. Mas eu tenho que falar de todo o processo. Preciso de escrever como custou pois preciso que o mundo saiba como foi a minha namorada. Começou por ser uma terça-feira como as outras. Portugal estava alegre por ser campeão e os taxistas aprendiam a competir com a Uber. Em Lisboa, ainda não existiam 50 marcas de distribuição de comida e ainda não existiam 70 marcas de obstáculos no passeio para pessoas com limitações de locomoção, vulgarmente apelidados de trotinetes eléctricas. Os Hotéis já se concretizavam e as pessoas iam começando a ser despejadas aos poucos. O maior caos era o aparecimento de adolescentes zombificados no meio da estrada por tentarem apanhar um peixe vermelho e uma pedra com braços no Pokémon Go, a mais recente novidade. Este era o Portugal que iria conhecer a minha filha e Lisboa estava no início das suas grandes mudanças.
De mala feita, saímos de casa, sem chatice de ninguém, em rumo para o palco da vida. E isso era tudo o que podíamos querer. Paz.
Em toda a nossa relação, foi a primeira vez que eu quis ir de táxi e ela, a namorada, de metro. O exercício fazia-lhe bem e podia facilitar o nascimento. Infelizmente, o bebé era teimoso, por isso serviu para cansar apenas. Mas foi um passeio bom. Estávamos bem dispostos. Ansiosos e nervosos (não sei porquê), mas felizes, definitivamente. Consegui capturar em fotografia um dos seus últimos sorrisos enquanto grávida. Foi dos mais bonitos que ela já deu, talvez por ter sido dos mais sentidos. Estávamos felizes, mais do que assustados. Íamos conhecer a nossa filha. O momento chegou. À chegada do Hospital, comecei por ter uma pequena batalha por ter trazido a mala da minha namorada. Disseram para eu descer e ir pô-la ao carro. Eu disse que teria de tirar a carta primeiro, e não sabia se dava tempo. Podia tentar, mas era arriscado. Ficámos num quarto com mais 4 senhoras. Uma delas já tinha feito o parto mas os enfermeiros fizeram de tudo para a manter ali, arranjando desculpas de diagnósticos, quando a razão era a falta de documentação da mãe que não era portuguesa. Quanto a nós, tivemos pela primeira vez a experiência de um CTG sem fios, ideal para passeios e interrails. Existiam algumas contracções, mas não eram significativas. Uma ou outra maior que provocava picos divertidos nos gráficos mas tudo muito espaçado. A bebé estava a preparar-se para continuar a ver Netflix na barriga da mãe por mais uma semana, no mínimo. Não havia pressa. Tínhamos chegado por volta das 08h30, e assim ficámos durante o que viria a ser um longo dia. Lá estava aquele relógio no ar. Agora não esperavamos por uma resposta de alguém para voltarmos ao dia a dia e continuarmos em frente; agora esperávamos pela nossa filha. As dores iam aumentando e o desconforto removia qualquer posição de estar. O sismógrafo reportava ocasionalmente uma montanha muito fina, que coencidia com as espadas que a minha namorada sentia pelo corpo. O único alívio foi dado por uma enfermeira que ofereceu uma bola de pilates ao qual a minha namorada se sentou e sentiu uma leveza de quem sobrevoa as nuvens, mas depressa aterrou quando chegou a médica que ordenou que a bola fosse removida por imediato. A minha namorada pedia alguma coisa para comer devido à fome, o que compreensívelmente não seria possível dada a cirurgia eminente. Mas se existe algo que intimida neste mundo é o pedido de uma mulher grávida, e as auxiliares não tiveram outra hipótese se não trazer, pelo menos, uma pequena gelatina de ananás. A cor, o cheiro e, alegadamente, o sabor, era de urina. Às vezes uma pessoa confunde os frascos, portanto não me surpreenderia. Fosse o que fosse, a minha namorada não conseguiu comer. Tinha fome, mas o desconforto apoderava-se de qualquer sentimento que se manifestasse, dando apenas permissão para a sensação de dor entrar, mas era uma entrada exclusiva no Lux Hormonal. Havia fome, mas seria realmente fome? Aquele corpo tentava organizar uma fila enorme de hormonas que decidiram ir fazer o cartão de cidadão no mesmo dia. Estava uma confusão e haviam hormonas de gravata a reclamarem por trabalharem mais do que as outras. A minha namorada insistiu que eu fosse almoçar alguma coisa ao bar do hospital. Apesar de eu não ter apetite e não querer afastar-me, apercebi-me que ela estava grávida por isso não havia manobra para me impor. Lá fui eu comer um rissol de leitão de massa tenra, por sinal, saboroso. Apanhei um pouco de ar e de Sol, mas não tardei em voltar ao quarto. Existiram momentos de silêncio. Momentos em que ela fazia um pouco de Sudoku para se distrair. O mesmo Sudoku que comprámos no Aeroporto quando partimos para a Dinamarca. As dores iam interrompendo, contudo. Algumas talvez já nem as sentisse pelo hábito, mas outras insistiam em chamar-lhe à atenção. E não havendo forma de estar, o estar era agora em pé. E dançámos. Foi a nossa melhor dança em toda a nossa vida. Sempre recordei este momento como a dança no V for Vendetta: uma revolução sem dança é uma revolução que não vale a pena ter. As músicas foram cantadas por nós, mas por alguma razão decidimos escolher apenas as músicas que não sabiamos as letras de cor. Cantámos sobre os peitos da cabritinha quando as dores eram como os risos: desesperantes. Cantámos sobre como a Escuridão era a nossa Velha Amiga, para quando ela pedia uma letra que eu soubesse mais do que três linhas. Cantámos sobre todas as Ondas que se Quebram, em versão acústica. Sobre todas as ondas que quando quebram, dizem à próxima onda que virá mais uma a seguir, e sobre como nós devíamos persegui-las, juntos. Cada uma. Porque esta era a nossa música. O cansaço apoderava-se dela. O que quer que seja que lhe tenham introduzido para provocar a indução, já acordava o útero. Não sei o que usaram, mas assumo que tenha sido uma fatura de um parto no privado. Foram várias as tomas de ben-u-ron ao longo do dia para apaziguar, mas nada fazia efeito. Até que as dores foram aumentando. E aumentando. E aumentaram uma terceira vez. Escrevo agora como a minha namorada sofreu dores horríveis. Contorcia-se e suava de agonia e desespero. A epidoral não teve qualquer efeito dormente. Claro que não teve efeito. Depois de tudo o que passámos, depois de todo o stress que ela atravessou, porque razão a epidoral faria efeito? Apenas sofreu. E sofreu tanto que com os gritos apareceram médicos e enfermeiros. Não contei quantos, mas preencheram o meu campo de visão com batas, deixando a minha namorada no meio do meu foco enquanto o seu redor era um vulto branco. Eu senti-me a afastar dela lentamente, como se não tivesse sido necessário os enfermeiros dizerem para eu me afastar. Eu já estava a afastar-me, sem saber. Foi tudo tão rápido, mas em câmara lenta. Eu apercebi-me que não podia fazer nada. A minha namorada não morreu, mas deixou de existir durante tanta dor. Não era ela. Deixou de o ser. Não era mais uma pessoa. Era apenas dor. Eu não podia fazer nada porque ela não me iria sentir ali, muito menos ouvir. Fui então afastado por uma enfermeira enquanto me apercebia que as águas já tinham rebentado. E saí para o corredor. Lá fora, estava eu e um outro rapaz, talvez da mesma idade ou um pouco mais velho. Não falámos. E ali estávamos nós, dois idiotas sem saber o que fazer enquanto a mulher tem o trabalho todo. Ele andava sobre um oito desenhado pela cabeça, e eu estava estático. Fiquei em pé, em frente da porta de segurança. Passei por ela várias vezes naquele dia, para ir ao bar e para ir à casa-de-banho. Mas impressionou-me como a porta estava agora fisicamente mais alta do que me lembrava. Parecia ter o dobro do meu tamanho, uma altura estúpida. E este momento foi calmamente enervante para mim. Sempre que eu fiz teatro, ou subi ao palco por algum motivo, eu nunca o quis fazer. Os ensaios eram extensos e diários. Eu estava mais que preparado. Mas, chegada a altura, eu não queria passar as cortinas e ser observado pelo público. Quando ouvia as pessoas a sentarem-se, eu só queria desistir. Sabia que passei pelo mesmo na noite anterior e correu bem. Sabia que depois de pisar o palco eu ficaria confortável e, por mim, lá ficava. E raras eram as noites em que eu não pensava que tinha sido a melhor das noites. Mas, ainda assim, ali estava eu a não querer passar por aquilo. Não era medo de falhar, era só falta de vontade de querer fazer o que fosse, muito em culpa da ansiedade de sentir o tempo a acabar para ser chamado. Mas não desta vez. Foi a única vez em que eu aguardava pela passagem do tempo para ser chamado a passar as cortinas e pisar o palco. A estrela não seria eu, nem seria sobre mim. Mas tinha o meu papel secundário a desempenhar. E queria mais do que tudo poder fazê-lo. Esta barreira que me separava da minha família teve muito peso, simétrico à altura. Atravessar aquele muro era ser Pai, e deixar o que eu era até ali para trás. Eu sempre quis ser Pai. Sempre. Mas não sabia se teria coragem para estar presente no parto. Não era de todo algo que fizesse sentido com a minha imagem de tanso. Eu sou acanhado e sensível. Como poderia ter força para estar presente nesta experiência sem desmaiar? Ouvi tantas histórias de pessoas fortes que não o aguentaram. Eu já tinha visto muitos vídeos de partos no Liceu. Partos no hospital, partos no sofá, partos no banho, partos de frente, partos de trás, era sagrado que aquelas semanas não iríamos estudar mais matéria se não ver bebés a aparecer. Claro que é diferente estar a assistir a um parto ao vivo. Primeiro, porque é ao vivo; não são gritos em diferido, são reais e penetram mais do que os ouvidos. Mas é surreal quando é alguém que nós conhecemos e amamos. O perigo é… mais realista. No entanto, eu nunca pus eu causa que não iria assistir ao parto. Porque não era sobre mim. Era sobre a minha mulher. Ela precisava de mim e ela não teria escolha se não passar por aquelas dores infinitas e eu não tinha o direito de não estar presente. Eu sempre soube que iria estar presente. Só não tinha confiança para cortar o cordão umbilical, era a única ideia que me fazia impressão. E assim, abriram a porta, e eu atravessei aquela muralha. A minha namorada já estava deitada e a iniciar o processo. Ela olhou-me a entrar na sala, mas sem me ver. Fiquei junto ao seu ombro direito e as minhas mãos seguraram a sua. Eu estava calmo, e não permiti que as minhas mãos tremessem. Não podia passar isso, mas não disfarcei nada. Eu estava a ser o que precisava ser ali. E estava a fazer o que mais ninguém com formação em medicina conseguia. O meu papel ali era assegurar que não estava sozinha. Ela ia passar por isto, mas comigo ao lado, sempre. A minha namorada estava de volta. As dores não a queriam deixar, mas ela estava de volta. Reconheci-a. Reconheci que tudo o que lhe correu mal na vida, estava ali. Reconheci que este era o momento do nascimento, mas também de um teste derradeiro em que ela era mais uma vez, entre tantas, desafiada a ultrapassar dificuldades tremendas. Ali estava ela a passar por dores que eu só poderei descrever com o que vi, nunca com o que senti.
A vida esteve sempre contra a minha namorada, desde criança. Desde que alguém tinha de tomar conta dela e não o fez. Desde que ela teve de tomar conta de si e dos outros. Desde que só tomou conta dos outros por não poder tomar conta dela. Desde que tomou conta de tudo sem ouvir um perdão ou um agradecimento. Desde que tomou conta dos outros e só ouviu desprezo. E agora, tinha a derradeira prova como ser humano em dar vida a alguém. Passar por dores para que outro ser possa ter o direito de crescer, descobrir e sonhar. Deixar que outro ser aprenda o que é amar e ser amado. Dar uma parte de si. Uma metade que lhe pedia toda a força que tivesse. Ouve momentos de desistência por já não existir mais para dar. Era impossível. Doía, e a força colossal já não chegava. Já deu tanto até ali, já era demais. Ela pediu para desistir, dizendo que não conseguia. Foi recuperando o fôlego. Voltou a tentar. E sozinha, encontrou dentro de si uma força infinita.
Teve a ajuda apenas de si própria. Por tudo o que lutou na sua vida, conseguiu a coragem para dar mais e atravessar o impossível.
Sozinha, continuou e deu mais do que tinha.
Sozinha, lutou contra tudo o que lhe fez frente.
Sozinha, deu toda uma vida.
Sozinha, ela conseguiu dar a este mundo a Emília.

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