05 May 2019

Ano 1 | Episódio 17 | Olá - Ou: Uma História que Acaba em Amor






" A única coisa que me vai fazer impressão é cortar o cordão umbilical"

 A minha mulher estava exausta. Não estava exausta de ter andado muito com dois sacos do Pingo Doce com 6 litros de leite, uma couve abastada e um garrafão de água, isso seria estar cansada. Estava verdadeiramente, em todo o potencial da palavra (até a sua exaustão, até a palavra não aguentar mais), exausta. Exausta, como uma mãe.

 A minha filha estava no ar, em princípio nas mãos de alguém, a chorar. Existia uma corda branca e esverdeada (a minha namorada, se tivesse consciente, diria que era azulada. Eu daria razão mais tarde porque por questões venosas faria sentido, mas naquele momento era verde e sou eu que estou a escrever), semi-esticada à minha frente. E, como que ao mesmo tempo, uma tesoura flutua. Associei o que aquele conjunto era capaz. O derradeiro momento que eu temia, não me custou nada. E não custou porque deixou de ser "cortar 'um' cordão umbilical". Lembro-me de sentir que a minha mulher e a minha filha precisavam de mim para tomar esta acção. Qualquer pessoa podia cortar, mas a minha presença ditou que seria eu. E sem pensar em nada, fi-lo porque era o que precisava de fazer, como um instinto que me disse "elas precisam de ti". 

 A tesoura não funcionou à primeira (como as tesouras tendem a não funcionar), talvez por eu não entender que material me esperava. Que força devo aplicar? Qual a precisão necessária? E à segunda tentativa, consigo golpear. A vibração sobre o meu polegar direito indicava que eu estava a cortar borracha particularmente elástica. Ao entender do que se tratava, o terceiro corte já tinha a precisão necessária e assim separei a ligação orgânica entre a mãe e a filha. A ligação mais complexa, essa seria intocável.

 Como eu nunca tive boa nota a Português no secundário, não conseguirei descrever o bem que me soube ver a minha pequena filha ao colo da mãe. Mas sei que admirei muito e que era um momento que a minha namorada merecia depois de tudo. O fruto da sua luta. E, para mim, a oportunidade de guardar um ponto de vista privilegiado.

 As nossas lágrimas corriam desde que a ouvimos chorar e a voar pela sala de parto, desesperada com a confusão, não entendendo o que se passava. Estava ali tão bem a arrumar umas coisas e, de repente, é expulsa para um mundo cruel. Tudo o que a poderia assegurar que estaria bem era o colo da mãe. Eu mostrava o meu primeiro sorriso de pai, que é dos sorrisos mais parvos que um homem pode ter mas, caramba, se não é o mais sincero. A minha namorada ria e chorava de alegria. Uma última explosão de emoções naquele dia. Nunca fomos tão felizes juntos como neste pequeno, grande momento.

 Depois da primeira lavagem para retirar o sangue, é colocado um minúsculo gorro sobre a sua cabeça e, em seguida, a minha filha tem a experiência de ir pela primeira vez para o colo do Pai. Assim, encostei-a ao meu peito e segurei com enormes e desengonçados braços algo de uma preciosidade incalculável. A minha Filha. Sossegada como o Pai, sem fazer barulho, tentava procurar conforto junto da capa do Division Bell dos Pink Floyd que era a minha t-shirt. E abriu os olhinhos, revelando dois pontos negros enormes como se eu fosse um Deus a observar dois universos lado a lado. A ciência confirma que eles não vêem mais nada do que, no máximo, vultos ofuscados. Segundo os estudos que li, perguntaram a vários homens e mulheres entre os 25 e os 40 anos sobre o que viram assim que nasceram, ao que a maioria respondeu: "tomara eu lembrar-me do que jantei ontem, quanto mais", concluindo assim um estudo sobre o olhar do recém nascido suportado por uma esmagadora percentagem. Mas eu acredito que só vejam vultos, e comprovo com vários exemplos de pessoas por quem passo no meu dia a dia que, para o meu olhar, não passam de manchas.

 Eu quis ser um pai realista. Eu disse a mim e a quem fosse, em todas as oportunidades que tive, que se a minha filha nascesse feia, eu iria admitir. É impossível que todos os pais tenham filhos lindos. As minhas sinceras desculpas aos pais, mas eu fui colega de alguns dos vossos filhos e posso testemunhar que se não nasceram feios, estragaram-se muito cedo. Eu próprio não era em nada atraente, especialmente quando abria a minha boca e mostrava um comité de dentes que não se entendiam.

 A minha maior inspiração para esta atitude foi a minha avó Anita. Conta-nos sempre sem qualquer dúvida pessoal que quando o seu filho (por coincidência o meu pai) nasceu, era feio. Mas não era só feio. Era "Ai credo nosso Senhor me perdoe" feio. A minha avó, no meio das dores e sofrimento, não se deixou enganar com as desculpas de o bebé ter passado 9 meses no escuro, cheio de humidade, passando por um canal estreito e recebido por o que provavelmente terá sido uma senhora cheia de verrugas e má educação. É claro que qualquer um faria cara de babuíno. Mas a minha avó considerou inadmissível, especialmente por todo o trabalho que deu fazer o meu pai, assim como o dinheiro gasto em tratamentos de fertilidade que, na altura, provavelmente apenas consistiam em fazer sexo quinzenalmente após um jantar à base de alecrim e dentes de alho. Só consigo imaginar após a revelação do pequeno Gremlin a cara de decepção que a minha avó terá, compreensívelmente, feito.

 Ao fim de uma hora de descrição de todos os defeitos do repugnante que era o meu pai, a minha avó faz especial atenção em referir que, [demasiado] tempo depois, o meu pai fez-se uma criança linda. Depois, termina a conversa reforçando o quão feio nasceu o meu pai para que entendamos a margem do contraste. 

 De facto, o meu pai foi um bebé bonito e originou uma criança linda. Daí a minha dúvida sobre a falta de bebés feios. Não há progresso, se a criança é feia é porque deve ter sido um bebé horrível. 

 Aos pais que se sintam na dúvida, proponho um jogo divertido lá para casa:  peguem num microfone, num placar e numa mesa e vão com os vossos amigos para o Largo Camões. O placar deverá dizer "Prova Grátis de Pastéis de Nata". Digam às pessoas que "isto é para as manhãs da Comercial" e mostrem fotos de vários bebés. Cada um tem de mostrar, no mínimo, três bebés, sendo um deles o filho verdadeiro e os outros fotos aleatórias da internet. Se tiverem três filhos, não se preocupem com fotos de outros bebés além dos vossos; vai ser mais divertido assim. Agora, perguntem à pessoa qual é o mais bonito e qual é o mais feio. E divirtam-se. Se não se sentirem confortáveis com a comparação entre amigos, perguntem só qual é o mais feio. Se alguém perguntar pelos pastéis de nata, digam: "isso é ali na Manteigaria". É importante que este jogo seja respondido por quem não vos conhece porque se forem homens vão ouvir "Vê-se mesmo que sai à mãe", o que é considerado por imediato que o pai está a ser chamado de feio mas se o homem não souber ler níveis de sarcasmo, corre o risco de não descobrir que o filho é feio como a mãe.

 Provavelmente o meu pai foi a criança mais linda de toda a minha família, tanto do lado do meu pai como do lado da minha mãe.

 Até nascer a minha filha.

 Reporto com felicidade que ela não se parecia com ninguém. Não foi trocada porque o choro tinha o mesmo envelope sonoro do bebé que se foi lavar ao bebé que voltou. E, caso eu ainda tivesse os meus instintos animalescos devidamente apurados, de certeza que notava que ainda cheirava ao mesmo. Era sem dúvida o mesmo bebé que desempenhou o fenómeno de sair da minha mulher. E a minha felicidade advém do orgulho daquele bebé não ser possível de se reconhecer nem com o pai ou com a mãe mas com a própria. Portanto, as histórias de "é a cara chapada do pai" ou "é tal e qual a mãe" (o pai tende a ser adjectivado com maior violência como que sendo maioritariamente um defeito da criança, o que eu compreendo) não se verificaram. Não durante, diria eu, um ano.

 Digo um ano porque desde então, e escrevo este parágrafo tendo a minha filha uma relativa proximidade dos três anos de vida, pouco mudou. Sempre cada vez mais linda, o que é fisicamente impossível mas ela lá decide o que quer fazer da vida dela; pouco importa a ciência aqui. Talvez a característica que se notava mais assim que nasceu fosse o seu nariz que era, definitivamente, do lado da mãe. Só com um pouco de crescimento é que associei ao nariz do irmão da minha namorada. É tão o nariz dele que se processá-la por direitos de imagem, é possível que o caso dure ainda alguns anos com o fundamento. As orelhas tendem a dizer que são da mãe, mas estão todos enganados. As orelhas são uma mistura dos pais. Nem grandes, nem pequenas, mas sim perfeitas. Aliás, foi o que mais me espantou em recém-nascida: o design das orelhas em miniatura mas cheio de precisão. Os olhos talvez tenham alguma influência minha mas a maior percentagem biológica é da minha própria filha. Eu talvez confunda por ser bastante expressiva desde bebé. Entendo que todos os pais pensem o mesmo de cada filho, mas lembrem-se que ao contrário dos filhos dos outros, a minha é perfeita. 

 Onde a reconheço mais como minha filha, fisicamente falando, é a sua expressão séria e de aborrecimento. Os lábios dela inspiram-se no design dos meus e ganha umas pequenas bolsas de ar entre os molares de maneira a que as bochechas fiquem mais volumosas. As faces de quem não quer ser incomodada e de quem está absolutamente morta de tédio com o excesso de interação medonha, é do pai. Só poderei ser mais babado quando tiver 90 anos.

 Quando está feliz a ponto de sorrir, aí sim, é totalmente a mãe dela. Depressa a câmara lenta capta a (ainda assim) rápida troca de orgãos do rosto e a minha filha mostra uma alegria como se fosse a mãe em formato pequenino. E que prazer poder ter a honra de ver a mãe dela sempre que a minha filha estiver feliz. E também eu fico feliz com esta sintonia. Quando está feliz, é a mãe, quando está com vontade de se matar só para ver se a experiência é mais divertida do que conviver com o seu redor, é o pai. Eu consegui, portanto, ter o que queria: alguém que se desinteressasse tão rápido como eu e, a mãe, conseguiu que ela tivesse caracóis. Eu sei que sou o pai dela, mas ninguém consegue provar o contrário: ela tem o cabelo mais bonito que a Terra conheceu. 

 Eu escrevi no capítulo anterior que a epidural não funcionou na minha mulher. Não foi verdade. Só não funcionou quando era preciso. Depois do parto, a minha namorada sentiu-se dormente a ponto de não sentir o alfaiate a coser. O que terá sido uma sorte pois viemos a descobrir tarde demais que a costura foi horrenda e teve de ser desfeita. 

 É por esta altura que a enfermeira diz: "E agora o Pai vai lá fora ligar à família!" Ao que eu respondi: "E o Pai quer que a família se fo-.."; bem, não podia dizer asneiras, havia uma criança presente. Disse antes: "o Pai fica aqui, a família pode esperar" e procedi a sorrir para a minha filha enquanto me deliciava com o primeiro colinho.

 A enfermeira ficou algo aborrecida. Ela estava, na verdade, tão interessada que eu ligasse à família como eu. O que era importante era que eu saísse para me poderem expulsar mais cedo pois já passava da hora de visitas e eu não podia continuar ali após o parto. Consegui uns minutos preciosos depois da festa das 19h55, mas antes das 21h eu já estava a caminho de casa. 19h55. Em homenagem ao pai, a minha filha era também contra horas redondas. Eu gosto de combinar convívios como marco os meus despertadores: às 43, às 59, às 32,…

 Mas a altura chegou e tive que me despedir de duas senhoras, uma que ainda mal tinha acabado de conhecer. Tirei a bata e fui para o elevador. Desci o elevador com o mesmo rapaz com quem contei os anos a passar até poder entrar na sala de parto. Estive quase para dizer "Parabéns", mas decidi aproveitar o silêncio de dois pais idiotas e babados com o que ganharam naquele dia.

 Pelo caminho, telefonei à minha avó Anita e contei-lhe que já viveu o suficiente para chegar a bisavó. "Próximo passo: trisnetos!". Depois, contei à recém Madrinha Ana e, antes que me esquecesse, informei a minha mãe. Pelo meio, tinha uma mensagem do meu sogro que estava indignado por ainda não saber nada, o que foi muito engraçado, especialmente tendo em conta o que revelo no próximo capítulo (eu tenho isto tudo muito bem pensado, estão a ver). Dirigi-me ao meu restaurante típico, pedi uma dose de hambúrgueres no prato e liguei à avó da minha mulher para que ela espalhasse pela aldeia, o que terá sido a primeira vez que lhe liguei directamente.

 Já em casa, ligo o computador e escrevo no Facebook um texto enorme entitulado "O Palco da Vida", explorando os temas que referi no capítulo anterior sobre não ter vontade de atravessar a cortina à excepção daquela que me separe da minha filha. E escrevi também o mais publicamente que consegui sobre todo o orgulho que senti pela minha namorada. E foi orgulho genuíno. Senti mesmo admiração durante e após o parto. Foi um dia longo, mas o parto durou apenas 30 minutos, o que em relatividade de grávida deverá ter sido um parto de segunda a quinta-feira. Escrevi sobre o orgulho porque fui o caminho todo a digerir o que pensei da minha mulher durante o grande momento, e como ela conseguiu estar não só à altura como foi capaz de impressionar e brilhar contra tudo. Nunca questionei que ela não fosse capaz, nem sei de alguém que não seja capaz de prosseguir com o parto, o bebé irá sair sem permissão de uma maneira ou de outra, mas, ainda assim, ela fascinou-me com toda a força que me demonstrou. E isto vale a pena ser relembrado. Vale a pena que eu lhe relembre os detalhes que lhe custaram para que saiba o quão perfeita e eficaz ela conseguiu ser, devendo levar esse crachá de honra para o resto da sua vida e pôr em causa os obstáculos que tenha de atravessar pois nenhum será, no fundo, tão exigente. Excepto, talvez, caso venha a ter gémeos. Aí tá lixada.

 Ao deitar-me depois de um dia enorme, recebo algumas fotos ilegais que a minha namorada tirou à nossa filha a dormir. As suas primeiras fotos, e o seu primeiro soninho no mundo. 

 A minha filha nasceu e não se pareceu com ninguém. Não consigo pensar numa forma mais bonita de se vir ao mundo.

 Eu tive uma filha bebé, e ela foi perfeita em tudo! Testemunhem-me!






22 February 2019

Episódio 16 | A Estrada para Admiração | Ou: A vida encontra um caminho

 "Hoje é o dia. Estás pronto? Estamos todos?"





 Um homem muito sábio, o tio de todos nós, disse-me uma vez algo que eu já sabia: " não relembres a uma mulher como foi o parto". Elas lembram-se de como lhes custou, mas há hormonas que fazem esquecer naturalmente uma boa parte de como foi. Segundo aprendi em Biologia, a ideia é não traumatizar, é quererem passar pelo processo outra vez (à excepção da parte dos sogros). Não é que só se lembrem da parte em que receberam flores, mas o corpo tenta ver o lado mais positivo fazendo pensar mais como foi ter o bebé no colo e menos como foi a enorme vontade de dizer asneiras. Tudo o que as hormonas do homem fazem é esquecer de quanto pagou para deixar o carro no parque.

 Mas eu tenho que falar de todo o processo. Preciso de escrever como custou pois preciso que o mundo saiba como foi a minha namorada.

 Começou por ser uma terça-feira como as outras. Portugal estava alegre por ser campeão e os taxistas aprendiam a competir com a Uber. Em Lisboa, ainda não existiam 50 marcas de distribuição de comida e ainda não existiam 70 marcas de obstáculos no passeio para pessoas com limitações de locomoção, vulgarmente apelidados de trotinetes eléctricas. Os Hotéis já se concretizavam e as pessoas iam começando a ser  despejadas aos poucos. O maior caos era o aparecimento de adolescentes zombificados no meio da estrada por tentarem apanhar um peixe vermelho e uma pedra com braços no Pokémon Go, a mais recente novidade. Este era o Portugal que iria conhecer a minha filha e Lisboa estava no início das suas grandes mudanças. 



 De mala feita, saímos de casa, sem chatice de ninguém, em rumo para o palco da vida.

 E isso era tudo o que podíamos querer. 

 Paz.

 Em toda a nossa relação, foi a primeira vez que eu quis ir de táxi e ela, a namorada, de metro. O exercício fazia-lhe bem e podia facilitar o nascimento. Infelizmente, o bebé era teimoso, por isso serviu para cansar apenas. Mas foi um passeio bom. Estávamos bem dispostos. Ansiosos e nervosos (não sei porquê), mas felizes, definitivamente. Consegui capturar em fotografia um dos seus últimos sorrisos enquanto grávida. Foi dos mais bonitos que ela já deu, talvez por ter sido dos mais sentidos. Estávamos felizes, mais do que assustados. Íamos conhecer a nossa filha. O momento chegou.

 À chegada do Hospital, comecei por ter uma pequena batalha por ter trazido a mala da minha namorada. Disseram para eu descer e ir pô-la ao carro. Eu disse que teria de tirar a carta primeiro, e não sabia se dava tempo. Podia tentar, mas era arriscado.

 Ficámos num quarto com mais 4 senhoras. Uma delas já tinha feito o parto mas os enfermeiros fizeram de tudo para a manter ali, arranjando desculpas de diagnósticos, quando a razão era a falta de documentação da mãe que não era portuguesa. 

 Quanto a nós, tivemos pela primeira vez a experiência de um CTG sem fios, ideal para passeios e interrails. 

 Existiam algumas contracções, mas não eram significativas. Uma ou outra maior que provocava picos divertidos nos gráficos mas tudo muito espaçado. A bebé estava a preparar-se para continuar a ver Netflix na barriga da mãe por mais uma semana, no mínimo. Não havia pressa. 

 Tínhamos chegado por volta das 08h30, e assim ficámos durante o que viria a ser um longo dia. Lá estava aquele relógio no ar. Agora não esperavamos por uma resposta de alguém para voltarmos ao dia a dia e continuarmos em frente; agora esperávamos pela nossa filha. 

As dores iam aumentando e o desconforto removia qualquer posição de estar. O sismógrafo reportava ocasionalmente uma montanha muito fina, que coencidia com as espadas que a minha namorada sentia pelo corpo. O único alívio foi dado por uma enfermeira que ofereceu uma bola de pilates ao qual a minha namorada se sentou e sentiu uma leveza de quem sobrevoa as nuvens, mas depressa aterrou quando chegou a médica que ordenou que a bola fosse removida por imediato.

 A minha namorada pedia alguma coisa para comer devido à fome, o que compreensívelmente não seria possível dada a cirurgia eminente. Mas se existe algo que intimida neste mundo é o pedido de uma mulher grávida, e as auxiliares não tiveram outra hipótese se não trazer, pelo menos, uma pequena gelatina de ananás. A cor, o cheiro e, alegadamente, o sabor, era de urina. Às vezes uma pessoa confunde os frascos, portanto não me surpreenderia. Fosse o que fosse, a minha namorada não conseguiu comer. Tinha fome, mas o desconforto apoderava-se de qualquer sentimento que se manifestasse, dando apenas permissão para a sensação de dor entrar, mas era uma entrada exclusiva no Lux Hormonal. Havia fome, mas seria realmente fome? Aquele corpo tentava organizar uma fila enorme de hormonas que decidiram ir fazer o cartão de cidadão no mesmo dia. Estava uma confusão e haviam hormonas de gravata a reclamarem por trabalharem mais do que as outras.

 A minha namorada insistiu que eu fosse almoçar alguma coisa ao bar do hospital. Apesar de eu não ter apetite e não querer afastar-me, apercebi-me que ela estava grávida por isso não havia manobra para me impor. Lá fui eu comer um rissol de leitão de massa tenra, por sinal, saboroso. Apanhei um pouco de ar e de Sol, mas não tardei em voltar ao quarto.

 Existiram momentos de silêncio. Momentos em que ela fazia um pouco de Sudoku para se distrair. O mesmo Sudoku que comprámos no Aeroporto quando partimos para a Dinamarca.

 As dores iam interrompendo, contudo. Algumas talvez já nem as sentisse pelo hábito, mas outras insistiam em chamar-lhe à atenção. E não havendo forma de estar, o estar era agora em pé. E dançámos. Foi a nossa melhor dança em toda a nossa vida. Sempre recordei este momento como a dança no V for Vendetta: uma revolução sem dança é uma revolução que não vale a pena ter. As músicas foram cantadas por nós, mas por alguma razão decidimos escolher apenas as músicas que não sabiamos as letras de cor. 

 Cantámos sobre os peitos da cabritinha quando as dores eram como os risos: desesperantes.

 Cantámos sobre como a Escuridão era a nossa Velha Amiga, para quando ela pedia uma letra que eu soubesse mais do que três linhas. 

 Cantámos sobre todas as Ondas que se Quebram, em versão acústica. Sobre todas as ondas que quando quebram, dizem à próxima onda que virá mais uma a seguir, e sobre como nós devíamos persegui-las, juntos. Cada uma. Porque esta era a nossa música. 

 O cansaço apoderava-se dela. O que quer que seja que lhe tenham introduzido para provocar a indução, já acordava o útero. Não sei o que usaram, mas assumo que tenha sido uma fatura de um parto no privado. Foram várias as tomas de ben-u-ron ao longo do dia para apaziguar, mas nada fazia efeito.

 Até que as dores foram aumentando. 

 E aumentando.

 E aumentaram uma terceira vez.

 Escrevo agora como a minha namorada sofreu dores horríveis. Contorcia-se e suava de agonia e desespero. A epidoral não teve qualquer efeito dormente. Claro que não teve efeito. Depois de tudo o que passámos, depois de todo o stress que ela atravessou, porque razão a epidoral faria efeito?

 Apenas sofreu. E sofreu tanto que com os gritos apareceram médicos e enfermeiros. Não contei quantos, mas preencheram o meu campo de visão com batas, deixando a minha namorada no meio do meu foco enquanto o seu redor era um vulto branco. Eu senti-me a afastar dela lentamente, como se não tivesse sido necessário os enfermeiros dizerem para eu me afastar. Eu já estava a afastar-me, sem saber. Foi tudo tão rápido, mas em câmara lenta. Eu apercebi-me que não podia fazer nada. A minha namorada não morreu, mas deixou de existir durante tanta dor. Não era ela. Deixou de o ser. Não era mais uma pessoa. Era apenas dor. Eu não podia fazer nada porque ela não me iria sentir ali, muito menos ouvir.

 Fui então afastado por uma enfermeira enquanto me apercebia que as águas já tinham rebentado. E saí para o corredor.

 Lá fora, estava eu e um outro rapaz, talvez da mesma idade ou um pouco mais velho. Não falámos. E ali estávamos nós, dois idiotas sem saber o que fazer enquanto a mulher tem o trabalho todo. Ele andava sobre um oito desenhado pela cabeça, e eu estava estático.

 Fiquei em pé, em frente da porta de segurança. Passei por ela várias vezes naquele dia, para ir ao bar e para ir à casa-de-banho. Mas impressionou-me como a porta estava agora fisicamente mais alta do que me lembrava. Parecia ter o dobro do meu tamanho, uma altura estúpida. E este momento foi calmamente enervante para mim. 

 Sempre que eu fiz teatro, ou subi ao palco por algum motivo, eu nunca o quis fazer. Os ensaios eram extensos e diários. Eu estava mais que preparado. Mas, chegada a altura, eu não queria passar as cortinas e ser observado pelo público. Quando ouvia as pessoas a sentarem-se, eu só queria desistir. Sabia que passei pelo mesmo na noite anterior e correu bem. Sabia que depois de pisar o palco eu ficaria confortável e, por mim, lá ficava. E raras eram as noites em que eu não pensava que tinha sido a melhor das noites. Mas, ainda assim, ali estava eu a não querer passar por aquilo. Não era medo de falhar, era só falta de vontade de querer fazer o que fosse, muito em culpa da ansiedade de sentir o tempo a acabar para ser chamado.

 Mas não desta vez.

 Foi a única vez em que eu aguardava pela passagem do tempo para ser chamado a passar as cortinas e pisar o palco. A estrela não seria eu, nem seria sobre mim. Mas tinha o meu papel secundário a desempenhar. E queria mais do que tudo poder fazê-lo.

 Esta barreira que me separava da minha família teve muito peso, simétrico à altura. Atravessar aquele muro era ser Pai, e deixar o que eu era até ali para trás.

 Eu sempre quis ser Pai. Sempre. Mas não sabia se teria coragem para estar presente no parto. Não era de todo algo que fizesse sentido com a minha imagem de tanso. Eu sou acanhado e sensível. Como poderia ter força para estar presente nesta experiência sem desmaiar? Ouvi tantas histórias de pessoas fortes que não o aguentaram. Eu já tinha visto muitos vídeos de partos no Liceu. Partos no hospital, partos no sofá, partos no banho, partos de frente, partos de trás, era sagrado que aquelas semanas não iríamos estudar mais matéria se não ver bebés a aparecer. Claro que é diferente estar a assistir a um parto ao vivo. Primeiro, porque é ao vivo; não são gritos em diferido, são reais e penetram mais do que os ouvidos. Mas é surreal quando é alguém que nós conhecemos e amamos. O perigo é… mais realista. No entanto, eu nunca pus eu causa que não iria assistir ao parto. Porque não era sobre mim. Era sobre a minha mulher. Ela precisava de mim e ela não teria escolha se não passar por aquelas dores infinitas e eu não tinha o direito de não estar presente. Eu sempre soube que iria estar presente. Só não tinha confiança para cortar o cordão umbilical, era a única ideia que me fazia impressão.

 E assim, abriram a porta, e eu atravessei aquela muralha.

 A minha namorada já estava deitada e a iniciar o processo. Ela olhou-me a entrar na sala, mas sem me ver. Fiquei junto ao seu ombro direito e as minhas mãos seguraram a sua. Eu estava calmo, e não permiti que as minhas mãos tremessem. Não podia passar isso, mas não disfarcei nada. Eu estava a ser o que precisava ser ali. E estava a fazer o que mais ninguém com formação em medicina conseguia. O meu papel ali era assegurar que não estava sozinha. Ela ia passar por isto, mas comigo ao lado, sempre.

 A minha namorada estava de volta. As dores não a queriam deixar, mas ela estava de volta. Reconheci-a. Reconheci que tudo o que lhe correu mal na vida, estava ali. Reconheci que este era o momento do nascimento, mas também de um teste derradeiro em que ela era mais uma vez, entre tantas, desafiada a ultrapassar dificuldades tremendas. Ali estava ela a passar por dores que eu só poderei descrever com o que vi, nunca com o que senti.

 A vida esteve sempre contra a minha namorada, desde criança. Desde que alguém tinha de tomar conta dela e não o fez. Desde que ela teve de tomar conta de si e dos outros. Desde que só tomou conta dos outros por não poder tomar conta dela. Desde que tomou conta de tudo sem ouvir um perdão ou um agradecimento. Desde que tomou conta dos outros e só ouviu desprezo. E agora, tinha a derradeira prova como ser humano em dar vida a alguém. Passar por dores para que outro ser possa ter o direito de crescer, descobrir e sonhar. Deixar que outro ser aprenda o que é amar e ser amado. Dar uma parte de si. Uma metade que lhe pedia toda a força que tivesse. 

 Ouve momentos de desistência por já não existir mais para dar. Era impossível. Doía, e a força colossal já não chegava. Já deu tanto até ali, já era demais. Ela pediu para desistir, dizendo que não conseguia. 

 Foi recuperando o fôlego.

 Voltou a tentar.

 E sozinha, encontrou dentro de si uma força infinita.

 Teve a ajuda apenas de si própria. Por tudo o que lutou na sua vida, conseguiu a coragem para dar mais e atravessar o impossível.
 Sozinha, continuou e deu mais do que tinha.

 Sozinha, lutou contra tudo o que lhe fez frente.

 Sozinha, deu toda uma vida.





 Sozinha, ela conseguiu dar a este mundo a Emília.


06 February 2019

Episódio 15 | Operador, Operador | Ou: Lá e de Volta outra Vez mais uma Vez





A minha formação começa com a apresentação de cada um. Eu disse que eu era o Bruno, e eles no geral pareceram aceitar que eu era quem dizia ser. Falámos sobre nós, nomeadamente sobre os estudos e sobre os sonhos que tivemos para termos a certeza que ninguém queria realmente estar ali. Continuamos com uma caminhada pelos pontos de interesse no edifício. Haviam mais pontos do que interesse mas gostei do que vi. O maior factor de contentamento era a quantidade de luz natural que melhorou significativamente a experiência de trabalhar naquele espaço. A formação decorre durante, sensivelmente, duas semanas, onde ficamos a conhecer um volume intimidante de informação a ter em conta, bem como o funcionamento de todo o software a ser utilizado. Apanhei bem o funcionamento e senti-me confiante.
 Durante a formação com colegas, deu para perceber um pouco da realidade de lidar com um cliente (sendo a minha primeira experiência no género) bem como algumas dificuldades a atravessar. Acabei por começar a atender mais cedo do que o esperado quando uma colega precisa de ir à casa de banho e deixa-me sob controlo total. O dia era parado, a chance de calhar uma chamada enquanto ela não regressava era pequena.

Mas foi a suficiente.

O telefone tocou e o meu primeiro cliente era estrangeiro. Tive de pôr em prática os conhecimentos recém adquiridos, e em inglês. Felizmente, não era difícil e safei-me bem. Continuei a atender e perceber as minhas dificuldades próprias, sendo a maior dificuldade entender que dados pedir consoante a situação, assim como a ordem para os pedir para que não soasse a uma conversa robótica como se estivesse a ler um texto.

 No final, o dia correu bem mas não me senti confiante. Com a ajuda da minha colega formadora esbocei um esquema no comboio para melhorar a minha qualidade de chamada e pus em prática no dia seguinte, junto de outra colega, a minha nova estratégia. A dificuldade era o que fazer com os dados do cliente e, mais importante, quais os dados a considerar importantes. São muitos, mas na prática há nos que interessam mais para a conversa fluir. A estratégia resultou e melhorei significativamente. Como recompensa, tive a oportunidade de apanhar uma chamada em que depois de despedir-me da cliente, ouço o autoclismo. Este fenómeno é estranhamente comum, fazendo com que eu seja da opinião que o facto de o cliente não ter desligado a chamada antes do autoclismo serve de feedback sobre a qualidade da resolução do operador.

Os dias iam passando. O que faz parte do conceito de tempo, seria estranho se vivesse sempre no mesmo dia. Saía de casa dos meus pais, apanhava o comboio, trabalhava, apanhava o comboio, voltava para casa dos meus pais e, mais importante, para as minhas mulheres. A minha namorada distraía-se em casa recriando as receitas incríveis da minha avó Anita. Rissóis, mousse, torta de cenoura. Apenas participei no esparregado para o meu pai, o que nos correu muito bem. Provavelmente o segundo melhor esparregado que ele já comeu, não sendo o melhor por não ser feito pela mãe, o que dá aquele gosto que não se compra em nenhum hypermercado.




A minha namorada fazia o almoço para eu levar para o dia seguinte e comer no trabalho, sempre com a preocupação de serem refeições rápidas e práticas, muito por culpa de eu ser esquisito e não gostar de almoçar no trabalho.

O ponto alto eram as noites. Ficávamos aconchegados na cama e eu tinha o prazer de sentir uma bolinha a andar na barriga da minha namorada. Parecia um joelho, talvez fosse um cotovelo, se calhar um pé. O que era, eu acompanhava com a mão para onde fosse. Às vezes só para chatear a minha filha de propósito e às vezes só para brincar com ela, como se fosse a primeira caminhada juntos. 

Obviamente, também encostei a cabeça várias vezes para a ouvir. O som era igual a um mar dentro de um copo de vidro. Com sorte, ouvia alguns movimentos e uma vez até cheguei a ouvir a Stairway to Heaven. Tão pequenina, mas já com bom gosto. E sabíamos que estava bem desenvolvida quando me espeta um pontapé na cara por eu estar a ouvir o que andava a fazer. Foi a minha primeira violência doméstica. Aquela criança definitivamente irá longe.

Uma noite em que eu fui um Pai de família deu-se por volta da meia noite em que os vizinhos de cima ainda estavam a ouvir música em grande volume. A minha mãe queixava-se e a minha namorada não conseguia descansar. A música era, de facto, péssima e a pior ofensa era estar alta. Música péssima e alta são combinações que não permito.

Levantei-me, pus as calças a correr e saí disparado de casa para o andar de cima. A minha mãe foi à porta preocupada, afinal, só tinha visto a minha agressividade em momentos familiares ternurentos. Isto era novo.

Bati à porta e falei com alguém que nunca tinha visto e não voltei a ver. Apenas referi "Se faz favor, é meia noite." Mas foi das frases em que disse com maior convicção. Naquele momento, não quis saber se teria de falar com uma ou vinte ou trinta pessoas (creio que moram lá cerca de 35 pessoas. São muitos quartos naquele andar). Não foi necessário discutir ou referir a minha mulher grávida. A forma como falei, disse tudo, e mais do que a minha entoação foi a performance da minha cara que vendeu que eu não estava impressionado com a atitude. Voltei para casa, voltei para a cama, voltei para a minha família e tivemos o merecido descanso. Estava demasiado chateado para saborear o orgulho de, por uma vez, ter estado à altura, especialmente por ter ultrapassado o meu pai e, sem dúvida, ter reagido conforme a vontade de todo o prédio. A música era realmente uma merda. Mas a minha namorada apreciou o meu comportamento e um lado meu que raramente via.

Com o passar dos dias, veio a realidade do trabalho. Ao fim de um mês, o stress apoderou-se de mim e eu queria desistir. Não o faria, mas sabia que não era trabalho para mim e que não ficaria por muitos mais meses. Tinha pesadelos com o software do trabalho. Aqueles tons laranjas e aquele som infernal da chamada a cair fazia-me suar na cama. Até aqui eu estava habituado a ter pesadelos com a Samara (não confundam com a Simara mas também é válido), nunca pensei que seria possível ter medo de programas informáticos. Existe aqui potencial para desenvolver humor em torno do Internet Explorer, mas deixo para vocês.

Recordo-me, no entanto, de um novo sentimento. O jantar era em família e as personalidades mais velhas alimentavam-me com a defesa de eu precisar de comer por ter vindo do trabalho. Eu agora era alguém que vinha cansado do trabalho. Não era trabalho que cansasse, mas eu tinha que estar cansado porque era um homem que trabalhava, logo, era desculpado de qualquer tarefa em casa. Absurdo, principalmente por eu não estar a trabalhar com cimento. Não desvalorizando o cansaço mental que se apoderou durante muito tempo mas não era um trabalho que justificasse eu ter de comer mais por isso. Ainda assim, havia um sentimento de orgulho da minha parte. Tinha uma rotina e tinha uma responsabilidade pra com a minha família que eu estava a cumprir. Estava contente comigo. Só não estava feliz por o emprego ser horrível.

A felicidade também nunca poderia apoderar-se de mim. Por mais conforto que eu e a minha esposa procurassemos, era virtual. Não era o nosso ninho, nem era o berço da nossa filha. Não era assim que devíamos estar aos 7 meses de gravidez. Nem a minha namorada podia descansar à vontade, por mais que se fechasse no quarto havia sempre ruído da minha família e das confusões com os gatos. Havia sempre alguém a precisar dela e havia sempre alguém a querer vê-la por ela lá estar. A casa era cada vez mais pequena e o sufoco maior. E prevíamos um futuro pior. O facto de estarmos a viver junto da minha família significava que além de não haver sossego para as rotinas da bebé, também seria uma porta aberta para visitas de estudo. Todos os dias, a todas as horas, teríamos que mostrar a criança. Não havia como contornar, mesmo que discutissemos estaríamos a criar mau ambiente e mau humor sem necessidade.

Até que ficámos a saber que os nossos vizinhos cegos voltaram para casa. Afinal, se era para estarem fechados numa casa, mais valia ser na própria. Não saiam à rua por serem trajectos desconhecidos, por isso era mais do que sensato estarem onde existia um confortável reconhecimento. 
E deste modo recebemos o último incentivo que nos faltava. Regressámos a casa. Corremos o risco, mas tínhamos uma bebé a caminho e precisávamos de um lar para a recebermos confortavelmente. Não havia mais varanda para cair e a passagem tinha sido fortificada. Não deixava de existir uma contagem decrescente para o prédio em si, mas ganhámos mais tempo crucial.

Qualquer coisa tinhamos aquelas escadas

Refizemos a cama da nossa filha e voltámos a guardar as suas roupas. Preparámos a casa melhor do que nunca e, agora em repouso, estávamos finalmente preparados.

Tanto quanto se pode estar preparado.

No fim da minha formação, assinei o contrato que me comprometia a jurar pela bandeira. Assim que o fiz, pedi para falar pessoalmente com o Apoio Administrativo ao qual anunciei que: "ah, é verdade, antes que me esqueça, vou ser pai. Daqui a um mês ou mês e meio, ou assim". 

A minha notícia correu bem, mas era obviamente implícito que, tudo bem, tens estes 6 meses, mas terás de provar mais que os outros colegas da formação que vales a pena. Afinal, eu ia começar já com a notícia que estaria fora por algum tempo. Felizmente, acabei por conseguir mostrar que não era horrível. Mas havia muito trabalho para melhorar.

E assim, o tempo vai passando. Até chegarmos ao derradeiro mês. O nono. Deixei a fase do 'podia ter saído antes, mas ainda podia sair depois'. Agora, era certo: será uma questão de sair quando bem lhe apetecer, e não tarda, vai-lhe apetecer. Todos os dias, eram potencialmente 'o' dia.

No entanto, a nossa filha mostrou sinais de inteligência. Talvez por culpa dos poucos momentos em que escutou o noticiário, mas ela escolheu não sair. Estava bem lá dentro. Estava mais protegida, quentinha e com a mãe. Podia sair quando lhe apetecesse, por isso, não lhe apeteceu. Nunca temos vontade de sair da piscina e a razão é a barriga da nossa mãe. Às vezes porque ainda estamos a fazer render o dinheiro que pagámos para estar na piscina, mas isso não é relevante para a minha mensagem.

Recordo-me do nosso primeiro momento de aflição como pais. A minha namorada manda-me uma mensagem a dizer que não sente a bebé há muitas horas. Acabámos por passar a noite no hospital com o auxílio do CTG a assegurar-nos que a nossa filha estava connosco. Apenas teve um dia mais calmo com um batimento cardíaco mais lento. Nós próprios não reconheciamos aquele ritmo, não era o dela, e até termos uma resposta da médica, ficar a ouvir o coração da nossa filha foi uma experiência muito fria. Era reconfortante ouvir o coração a bater, mas a falta de resposta sobre o que se passava assustava-nos. E aguardámos de mão dada até sabermos que estava tudo bem com ela. Foi uma noite silenciosa até casa, mas mais quente do que quando saímos.

Aguardou-se mais uma semana extra até a ideia de programar a indução. Podia sair a qualquer altura, mas, de repente, passei a ter uma data fixa. A partir deste dia, seguramente serei Pai.

Uma das minhas supervisoras solicita-me, como habitual, para eu fazer horas extra na próxima segunda-feira. Ao que eu respondo: "Na segunda não posso, vou ser Pai". O que é uma boa desculpa para qualquer situação, uma que eu devia utilizar mais vezes. "Não vou poder, estarei ocupado a receber uma tremenda responsabilidade." Esta supervisora, ao qual vou chamar Supervisora ½, era das mais entusiasmadas com a novidade. Adorava que o mundo tivesse a existência do conceito de bebé, e foi pioneira na tese de o nosso [futuro] grupo de trabalho só fazer bebés bonitos. A verdade é que sempre que nasceu um novo número de contribuinte, comprovava-se. 

Quando informei que seria um futuro pai, questionei se havia problema de eu sair a correr para o parto. Ficou bastante claro que era retórico, eu faria isso, mas essencialmente pedi a benção para o acto. Mal sabia eu que seria ao contrário, eu acabaria por informar que não poderia comparecer neste dia por o fruto já estar maduro.

Nos últimos dias antes do parto, a minha namorada perdeu qualquer receio. Aquele bebé tinha de sair. Ela já não aguentava mais as dores e o desconforto. É bonito sentir o coração da filha, mas é desagradável sentir o nosso próprio coração na boca por ter sido empurrado com dois pés a esmagarem a caixa torácica. Aquele bebezinho conseguia ser muito bruto com a mãe. Mas mesmo com a azia, enjoos, azia, dores e falta de posição de estar, e azia, a minha namorada comenta ocasionalmente as saudades que sente da gravidez. Apesar do stress que passou, o processo de criação foi memorável. Os maus momentos serão sempre associados, mas a ternura por aquele ser é uma história inesquecível.

Certo dia, Portugal resolve ser campeão da Europa. Só para experimentar, para ver no que dá. Fosse noutro país e eu teria de especificar 'Campeão de Futebol', mas em Portugal não existem mais modalidades. Pessoalmente, não gosto de futebol, mas ver a Selecção agrada-me por sentir um país unido. Mesmo que una só para isto, mas é bom ver. Assisti ao golo do Éder e celebrei como toda a gente. No final do jogo, ocorreu-me que a minha filha viria a nascer numa época em que Portugal era campeão. Na verdade, 2016 foi um ano em que Portugal ganhou a maioria de medalhas e troféus. Em parte, graças ao esforço dos nossos desportistas, mas a razão principal foi o milagre do nascimento da minha filha que influenciou e não é possível refutarem isto.

Portugal celebrava e rejubilava a vitória. E a minha namorada aproveitou a situação para ser extremamente grávida: eu vou lá fora, eu vou para o meio da confusão, e este bebé vai querer sair!

Mas aquele bebé teimou em não querer sair. O caminhar, o barulho, as explosões coloridas no céu, as bebedeiras, nada. Aquele bebé não queria sair, ponto final.

Encontrámos o Engenheiro Pipas e, numa rara excepção, contámos o nome da nossa filha, até aqui um segredo deliciosamente guardado. Foi das poucas pessoas que não só simpatizou com o nome como considerou fantástico. E eu sei que sou o pai, mas ele teve razão. Foi de facto uma escolha brilhante.

Voltámos para casa campeões mas derrotados. 

Avisei uma última vez a minha mãe que não queria que ela esperasse pela minha resposta sobre o parto. Ela insistiu que não iria adormecer até eu lhe ligar, mas expliquei que o parto poderia ser complicado, poderia nem nascer naquele dia, e eu não estaria com a preocupação de avisar ninguém. Alertei, inclusive, que iria ter o telemóvel desligado.

E tive razão, o parto não foi naquele dia. Chegámos ao Hospital e fomos informados que estavam com muitas mulheres grávidas e que não sabiam o que fazer com o tamanho do rebanho. Aparentemente, aguentaram pelo resultado do jogo para não perderem nada e no dia seguinte punham então os ovos. 

Por isso, voltámos para casa com a minha namorada cada vez mais exausta com o tamanho da barriga. Já bem dizia António Variações: "é para amanhã o que pode nascer hoje".

E o nosso António tinha razão. Foi para amanhã.

Lembro-me de estarmos deitados a olhar para o tecto. Não me recordo do que falámos, mas estávamos em sintonia como casal. Amanhã, seriamos três, cá fora. Amanhã teríamos um montezinho de hemoglobina para carregarmos e amarmos. 

Amanhã, íamos ser pais.





20 January 2019

Episódio 14 - Tudo arde | Ou: Como cães atrás de carros




 Tenho este capítulo escrito há mais de um ano. Revi algumas vezes, mas algo me impedia de o terminar. Achei eu que era por se aproximar muito ao presente, ao próprio Bruno que o escrevia. No tempo que passou, o Bruno mudou. Tenho um ego diferente, e irei mais tarde explicar que ego é este quando também o eu actual mudar, mas para já é importante reter que já consigo olhar para este capítulo com outros olhos. Não é a minha parte favorita. Relembra-me muito stress e muito medo que passámos os dois e, asseguro-me, os três. Mas isso eu já sabia quando escrevi originalmente. O que custava-me perceber na altura, que agora melhor compreendo, foi o marco sobre mim nesta situação. Foi uma das vezes em que eu falhei na minha relação, e uma das que não me consigo perdoar agora que me afastei.

 Fala-se muito em dias onde não se deve sair de casa. Há razão nisso, tendo em conta que a maioria dos atropelamentos ocorrem nas passadeiras. Todavia, em muitos bairros de Lisboa está-se mais seguro lá fora.

 Ninguém estava preparado para aquele dia, mas sabíamos ser inevitável. Eram cerca de 3 da manhã quando ouvimos um estrondo maior do que o normal. Eu e a minha namorada acordámos sobressaltados com o barulho. Julgámos imediatamente ser o prédio da frente pois de vez em quando caía algo por dentro devido ao mau estado. Mas tantas foram as vezes que o barulho que parecia ser debaixo do nosso nariz era, na verdade, lá fora. Não era fora do comum os carros subestimarem a nossa rua e rasparem o chão. Mas não desta vez. O nosso grande medo aconteceu, em parte.

 Fomos espreitar o que poderia ter acontecido. Não parecia ter sido connosco, até repararmos num pedaço da varanda do prédio da frente que faltava. Não sabíamos como reagir. A primeira reacção da minha namorada foi chamar a polícia mas pensei em aguardar pela manhã até saírem todos os vizinhos para o trabalho ou, pelo menos, estarem todos acordados para resolvermos a questão. 

 Foi aqui que eu falhei. A minha ideia, conforme eu entendo, tinha a sua lógica: os bombeiros viriam a vedar tudo. Eu não trabalhava, mas havia quem ainda tivesse a vida lá fora a decorrer e eu sentia-me culpado por ser o causador da confusão que, honestamente, todos queriam evitar. Julguei eu que a situação seria resolvida com uma proteção, alguma rede e algum metal, que nos permitisse continuar o dia a dia. Um remendo, como tantos que o prédio levou.

 Eu compreendo isso. Mas, quem ler a história, e são olhos importantes aqui, os de fora, pensa: mas que estupidez de risco a correr! E pensa muito bem. Eu vejo a minha lógica, mas era uma lógica errada. Deixei-me apoderar do facto de eu ser o mais novo na morada e deixar os mais velhos tomarem conta da situação. 

 Não me posso perdoar. Não estive a altura da minha família. Eu entendi isso na altura, que eu não estava a reagir da forma mais inteligente, mas não compreendi. A ignorância apoderou-se de mim e retirou-me qualquer sentido de responsabilidade. Falhei para a minha família.

 Voltámos para a cama e tentámos descansar, sendo uma palavra muito forte aqui. Diria deitar de olhos abertos até o sono inevitavelmente apoderar-se de nós. 

 Até que acordámos com um estrondo maior.

 Eu tive uma segunda oportunidade. Uma segunda oportunidade que, no ponto de vida em que actualmente escrevo, deixei de ter. 

 O resto da varanda desabou. A varanda era do segundo andar, tendo caído todo o entulho para a varanda de baixo que mal era suportada por dois barrotes frágeis e torcidos pela força que faziam, não ajudados pelo desgaste da chuva. O andar de cima era suportado por uma pequena e fina coluna, já de sí rachada. A qualquer momento podia cair tudo. Era claro que desta não passava. A minha mulher chamou a polícia imediatamente, e desta vez não fiz nada para a impedir. Era o que devia ter sido feito antes, e há muito.

 Eu fiquei impressionado com a queda da varanda. Julguei estarmos a salvo pois a minha vizinha do lado, a Dona Freira, sempre foi muito religiosa e rezava imenso tendo afirmado que o prédio não iria cair porque Deus não deixava. Eu confesso que admirei muito a senhora, afinal não pensei que tivesse fortes conhecimentos de engenheiria, mas aparentemente não rezou o suficiente e Deus aborreceu-se certa madrugada só para ver o que acontecia. Claramente a senhora não fez um bom trabalho e não podemos confiar nos outros, tendo eu começado a rezar a minha parte para me salvaguardar a pele.

 A polícia chegou e após uma breve olhada chamou de imediato os bombeiros e proteção civil. Os bombeiros, como sempre, impecáveis. Mas nem toda a ajuda foi boa.

 O que foi pedido aos moradores, essencialmente, era sairmos de casa, por razões óbvias. Mas não era fácil convencer uma população idosa que viveu a vida toda ali. O Tratado foi de arranjarmos qualquer espaço para ficarmos até, dentro de 3 dias, sermos colocados em alguma casa fornecida durante as obras necessárias para garantir a segurança. Assim, foi convencida a população. Portanto, para a rua foram pessoas como uma grávida de 7 meses, três idosos doentes e dois cegos. Especial ênfase nos meus vizinhos cegos que têm a casa adaptada para as rotinas do dia a dia. Isto vai ser importante, apontem.

 O importante era a segurança e deram-nos a chance de levarmos o essencial. Nestes momentos o essencial é muito vago, ora fosse visto pela vizinha Freira a levar um pequeno vazo. Parece tremendamente inútil, mas creio que é pela sensação de levar um pedaço de casa com ela, além de poder ter outras razões místicas que podemos nunca vir a descobrir.

 Escusado será escrever sobre o horror de ver idosos a serem levados de casa onde vivem toda uma vida, deixando tudo para trás. Estávamos todos convencidos que era para nossa segurança, mas sabíamos ser um futuro incerto. De momento, tínhamos de confiar naquelas equipas, mas o receio de ser o final dos nossos lares esteve sempre presente.

 Fomos todos para casa de familiares com a excepção dos meus vizinhos cegos que foram para uma pensão com a filha.

 Avisei o meu pai que íamos todos (eu, as minhas senhoras, a minha avó e a minha tia) para casa dele porque o prédio caiu, ao que o meu pai responde "Tá bem". É um homem de poucas palavras, mas complexas. Lá chegámos, levados pela polícia e repousámos para debater, acalmar e rir das tentativas de acalmar. A nossa sorte foi a minha tia não ter decidido trazer uma planta mas sim metade de uma sopa que tinha feito. Tínhamos, contudo, outro sarilho pelas mãos. A gata da minha tia estava em território do nosso gato-raptado-pelos-meus-pais. Encurtando a história, não se deram bem devido a divergências políticas.

 A família estava agora toda reunida sem saber como lidar com a situação. Quartos haviam e sobravam, mas o espaço ficava cada vez mais curto com o passar do tempo no meio de tanta gente. Sabíamos que três dias talvez fosse uma força de expressão, por isso aguardámos uma semana. Até que recebi uma chamada, mas não era da Proteção Civil ou do Hospital.

 Era do Teatro S. Carlos. Aparentemente andaram a arrumar umas caixas e a meter o que não interessava para o lixo quando apareceu o currículo que enviei algures em 2010/2011. Deduzo que me tenham chamado pela minha altura, já que a experiência naquele currículo não seria muita. Ao início recusei por estar a aguardar uma resposta de trabalho e estar numa total incerteza com a vida. Além de não ter casa, tinha um bebé prestes a nascer. Que disponibilidade teria eu? Como raio iria aos ensaios? Foi então que me falaram no salário e lembrei-me que tinha muito amor pela arte. Fora de brincadeiras, se o Hospital não resultasse, teria o trabalho como figurante, apesar do horário absolutamente merdoso não fosse um trabalho de teatro. E sempre seria mais próximo do que eu realmente gostava de fazer na vida. Figuras.

 Aceitei ir ao casting.

 Lá estávamos em Lisboa, reunidos em casa do Engenheiro Pipas, a fazer tempo para o propósito da nossa viagem até à capital: o meu casting. Mas aqui, apercebemo-nos que os três dias eram agora quase duas semanas, o que é mais tempo do que parece para alguém que não pode planear o futuro. A minha namorada decidiu ligar para o número no cartão que nos deram. Quando nos desmentiram que nos arranjavam uma casa temporária, a minha namorada pediu, ao menos, e sem pensar muito no que aquilo implicava, que nos autorizassem a passar na nossa casa para apanharmos as coisas da nossa filha prestes a nascer, quando lhe respondem "vá à Santa Casa pedir o enxoval". 

 Não estávamos a pedir nada além do que era nosso. E aqui, fiquei possesso. Existe uma distinta diferença entre dizer "levem coisas para três dias" ao invés de "logo se vê". Tínhamos as coisas, mas não nos deixavam tê-las. Aqui foi o meu ponto de quebra que me levou a tornar no homem que devia ser para a minha namorada.

 O importante naquele momento foi acalmar a minha namorada, acima de tudo, pois não era hora de se enervar mais do que já andava. Quanto a mim, o último lugar onde queria estar era num casting. Mas após discutir e ser praticamente expulso por todos, acabei por ir, no meio dos nervos e contrariado fosse com o casting, fosse com tudo na vida. Nada corria bem e tudo corria mal. Caminhei em piloto-automático até ao teatro S. Carlos e entrei. Sabia que se era para ter alguma hipótese, eu teria de esquecer tudo por um momento. Na verdade, usei os meus nervos da situação para estar completamente descontraído no casting pois, de facto, tinha mais com que me preocupar.

 Estávamos todos numa sala de ensaios. Sabemos que é uma sala de ensaios pela desarrumação de velhos figurinos. Eu gosto de trabalhar assim, confesso, faz-me sentir em casa e faz imaginar que histórias foram contadas com aquele pedaço de esferovite pintado. Faz-me entrar no mood certo. E aqui apercebi-me imediatamente que não tinha qualquer hipótese. Ao meu lado tinha várias pessoas em licra apertada. Eu era o único ser humano de calças de ganga e ténis em vez de sabrinas. Certo, as minhas calças eram apertadas, mas não revelavam os meus genitais o suficiente. Ou pelos menos quero acreditar que a culpa era das calças. Mas ao meu lado, além do cheiro de collants cheias de pó, tinha pessoas a florirem. Davam piruetas no chão como rappers elegantes e desabrochavam como lindas papoilas. Eu fiquei quieto. Eu entendo perfeitamente que é o modus operandi para aquecerem e abrirem a mente para o teatro. Simplesmente sempre fui maior fã de encarnar a personagem quando a tivesse estudado e não creio que fossemos fazer de Jardim da Celeste. Conseguem imaginar o Peter O'Toole a esticar as nádegas no ar antes de encarnar as persoangens? Se calhar até foi esse o segredo. Se calhar Marlon Brando fazia o helicóptero antes de encher a boca de algodão. Ou durante.

 Após verificar que estava a competir com o Cirque Du Soleil, entra o Sr. que me contactou e o Encenador. Sabemos que é o Encenador por usar um cachecol num dia em que o ar está abafado. Defendo que o calor naquela sala piorou consideravelmente com a presença daquele cachecol.

 Começou por agradecer a nossa presença e insultar indiretamente quem faltou sem avisar. Compreensível. Pusemo-nos em fila horizontal e o Encenador foi entrevistando um a um para saber a nossa experiência e disponibilidade. Chegando a minha vez, falei que fiz teatro e estava habituado ao palco, tendo disponibilidade total, desde que não fosse aceite numa entrevista de trabalho pelo qual aguardava a chamada, uma resposta que não fui o único a dar, muitos aguardavam pelas chamadas de outros empregos.

 Mas fui eu que derrubei as collants todas. Fui um actor incrível. Tenho disponibilidade total? Mas que performance! Mas o Encenador respondeu: "Não será preciso". Um presságio digno de cinema.

 Foi então que tivemos o nosso exercício eliminatório. Foi-nos dada indicação que a peça envolvia um império e nós seríamos os guardas. Deram-nos uma lança em madeira para seguramos e pediram para nos habituarmos a ela. E lá estávamos nós, a brincar com paus. Seguidamente, de pau na mão, ficámos em fila e deram-nos uma ordem. O Encenador pegou num pau e segurou-o firmemente. O Encenador e o pau eram um só. Todo ele era um pau. E ordenou, simulando, que caminhássemos em sentido e, chegando à linha no chão, déssemos um golpe que simulava uma posição de defesa ofensiva, como guardas romanos contra o Obélix.

 O primeiro grupo caminhou e fez um grito de guerra quando atacou. Eu estava no segundo grupo. Prestes a receber o sinal, encarnei o meu guarda sem ter de abrir as pernas como uma borboleta. Simplesmente, entrei na mente de um soldado espartano em cuecas mas com uma belíssima capa vermelha que apesar de ter perdido os seus antigos part-times como advogado num escritório no Amoreiras e à noite como vendedor de anéis em silicone com LED's alternados no Bairro Alto, estava satisfeito por poder servir o seu povo uma vez mais e ganhar pontos sobre o direito à custódia dos seus três filhos, o Samuel, o Júnior Sénior e a Catarina. E assim, agarrei o meu pau vigorosamente, e caminhei em frente, confiante que era isto que eu queria, agarrar num pau.

 Lançaram todos um grito de leão que acabou de entalar os testículos. Eu lembrei-me do Stanley Kubrick e pensei: ninguém me pediu para gritar, o mais certo é levar uma chapada se o fizer. E deste modo, apenas agarrei no meu pau e coloquei-o em posição de ataque, como há muito não o fazia.

 Tivesse gritado ou não, o resultado seria o mesmo. Houve uma breve reunião entre o júri e estava decidido. Chamaram as raparigas que foram péssimas e expulsaram-nas. Depois, chamaram os rapazes que foram absolutamente horríveis. Que não foram muitos, fui apenas eu. Acenei entendendo perfeitamente a decisão, e genuinamente entendi. Claramente não estava enquadrado para aquela peça, mas cismo que foi apenas pelo meu aspecto físico. Além do guarda-roupa desadequado, era o único actor com uma barriga de cerveja e óculos. Talvez pudesse fazer de Rancor gordo com miopia, mas a decisão estava feita. O Sr. que me telefonou para o Casting não me deixou abrir a porta sem me ter agradecido pela presença. Gostei do Sr.

 Após atravessá-la, surge o Robin Hood que me diz "espera Bruno!". Eu olho, a achar que era desta que me casava, quando ele me tenta confortar dizendo que estive bem e que estas coisas acontecem e é importante não desistirmos. Não me recordo se ele realmente disse que eu estive bem. Eu agradeci e tentei explicar que era na boa pois não era a primeira vez que fazia um casting, conhecia o processo, mas nada o impediu de me calar com um abraço e voou para dentro como uma joaninha. Naquele momento, pareceu-me um pouco condescendente, mas sabia que no fundo foi só simpático.

 Apesar de não ter sido avaliado pelas minhas capacidades além da forma como seguro num magestoso pau, foi uma boa experiência e uma honra ter tentado a sorte num teatro como o S. Carlos. O grupo era porreiro, ainda que o Encenador não me parecesse muito interessante. Sublinho que não o estou a caracterizar pelo seu trabalho, que nunca vi, apenas por não me ter convencido tal como eu não o convenci. Creio que nos respeitámos em simultâneo por isso mesmo. 

 Sei também que falei durante muito tempo sobre genitais neste capítulo. Isto são histórias para a minha filha ler no futuro e quero que ela entenda como é o mundo das artes. Ou se agarra bem no pau, ou não se vai a lado nenhum.

 Regressei a casa do Engenheiro Pipas, e contei a história em detalhes semelhantes. Deu para rir e esquecer um pouco a nuvem negra sobre nós, mas lá tivemos de voltar ao mundo real. Fomos durante a viagem até a casa dos meus pais a degustar o maior problema: como dizer à minha tia de 90 anos que não nos iam ajudar e era incerto quando poderíamos se quer voltar? Ela que se farta de estar numa casa que não a dela ao fim de uma hora. 

 Até que a minha mãe teve uma ideia. A minha mãe apercebeu-se que vivíamos em Portugal e que tudo pode ser resolvido com cunhas. A minha mãe falou com um ser humano incrível e o mesmo limitou-se a fazer um telefonema. No dia seguinte, lá estávamos nós na nossa casa, com os bombeiros e com a proteção civil. Passei pelas seguranças improvisadas e fui com um bombeiro à minha casa. Uma vez mais, descontrolei-me. Apanhar a roupa da minha filha, o colchão, fraldas, tudo quanto fosse necessário, desgastou-me emocionalmente e desabafei com o bombeiro que me disse que assistem muito estas situações de prometerem alojamento breve e deixarem de comunicar. Os meus nervos eram tantos que desliguei uma chamada no telemóvel. Não era um momento conveniente para atender publicidade. Levei também objectos como a nossa televisão e outros aparelhos electrónicos, afinal, a casa ficaria ao abandono. E o último artefacto que apanhei foi um pequeno urso de peluche, que foi um acto que me trouxe lágrimas. Era inútil, seriam longos meses até ela brincar com aquilo. Mas tinha de trazer algum brinquedo dela, tinha de trazer algo infantil comigo. No fundo, era a minha planta misteriosa. E foi quando recebi outra chamada do mesmo número. Aqui apercebi-me que talvez não fosse publicidade a um seguro de saúde mas sim uma chamada do emprego. Atendi, com a melhor voz possível e larguei todos os meus nervos, qual actor digno de trabalhar no teatro S. Carlos. E estava correcto, era o trabalho. Fui aceite. Mas recebi outra chamada, desta vez a minha vizinha Patrícia, a Doutora, filha dos meus vizinhos cegos ao qual avisamos-lhe para aparecer também e vir buscar o que pudesse. A Patrícia, a Doutora, ligava-me a pedir para me despachar porque a mulher da Proteção Civil estava a por a minha namorada a chorar. Estamos a falar exactamente da mesma pessoa que falou com a minha namorada ao telefone, estando a discutir com ela que foi muito mal educada. Posso comprovar que não foi, eu estava ao lado dela durante a chamada e lembro-me perfeitamente de a minha namorada ter dito "Boa tarde".

 Nós tínhamos esta preocupação. Estávamos prestes a ter um bebé, vivíamos numa zona perigosa e não tínhamos empregos. Imaginámos sempre o pior para a nossa filha, particularmente por conhecermos bem as entidades que nos protegem a todos, portugueses. Mas agora, mais do que uma estabilidade financeira, tínhamos maior segurança por eu ter um emprego.

 Saí de casa, cheguei ao pé de todos, pousei as malas e disse: "Duas coisas: Primeiro, já arranjei trabalho."

 Todos congratularam-me, incluído a Sra. da associação que nos protege, os civis. A Sra. profere o seguinte: "Ainda bem." Ao que respondo. "Pois é. A segunda coisa é que quero o seu nome, vou fazer reclamação". Assim o fez, assim o fiz. 

 Tivemos que improvisar um ninho em casa dos meus pais. Era do pior que nos podia acontecer, perdermos a mínima independência para cuidarmos da nossa filha, porque se há coisa que não se tem numa casa cheia de gente, é espaço e sossego. Não leva muito tempo até nos sentirmos dentro de uma garrafa de vidro fechada com uma vela acesa. Não erámos só nós que nos sentiamos mal, mas também a minha tia e os meus pais. Ninguém estava bem, à excepção da minha avó que apreciava estar em família, independentemente das razões que nos juntavam.

 Estávamos agora sem o nosso lar que formámos com carinho e com esforço, sem saber como seria o futuro da nossa filha. Não poderíamos viver na incerteza, uma vez mais. Não com a nossa filha. Precisávamos de sentir segurança para sermos confiantes, e naquele momento, estávamos perdidos. 

 Mas com o passar do tempo, a solução foi-nos parecendo cada vez mais óbvia.