Peguei na minha bicicleta romena e fui a pedalar a toda a velocidade possível até casa. Com a excepção de três ou quatro semáforos, o trânsito era tranquilo e o meu pânico por chegar a horas ao trabalho enquanto assava a correia e garantia um feríado às pastilhas, dava um digno videoclip para os Fire Inc.
Isto até chegar à subida da morte.
Eu tentei subir por 4 vezes durante toda a minha estadia, mas depois de conseguir um 1/6 (uma vez fiz 1/5) desistia sempre e fazia o resto a pé. A humilhação era tanta que eu fingia às pessoas da paragem de autocarro que eu queria ir ao Føtex comprar algo mas na realidade dava a volta para concluir a minha peregrinação. A vergonha maior era eu chegar a meio a puxar a bicicleta e ver idosos a passarem por mim como se estivessem a pedalar na Praça da Figueira em vez de o Elevador da Glória.
Entrei pela casa, comi qualquer coisa rápido (ou pensei nisso) e peguei no meu trolley da Primark a caminho da estação de comboios. Em vez de seguir o meu plano original de fazer um caminho maior mas conhecido, decidi ir pelo Google Maps que me deu o caminho mais directo. Em teoria. Enquanto ouço Mad Max Fury Road, reparo que ainda estou a demasiados Km de chegar a horas e dou por mim num intenerário sem entroncamentos. Obviamente, meti na faixa Chapter Doof e corri que nem um porco quando descobre que a quinta dos donos carismáticos é na realidade A Ilha de Michael Bay. "Corre Michael Clarke Ducan, corre!"
Por fim, sem água no cantil, cheguei suado ao parque da estação e pedi desculpa ao meu patrão pelo atraso, enquanto retirava a folhagem que colhi nas rodas da mala pelo caminho, de tal forma que foram arrastadas. Foi uma miragem bonita para os condutores, um desengonçado a correr ao lado da estrada com um trolley. Mais movimento que na IC19, lá nisso. Fiquei a saber que cheguei 25 minutos antes da hora e que teríamos de aguardar pelo meu colega de obra.
Eu já tinha trabalhado para o meu patrão (de forma a mascarar-lhe o nome, chamemos Notklaus). A minha esposa limpava a casa enquanto eu fazia jardinagem, mais precisamente, retirar raízes de árvores a 100kr cada. Durante as primeiras parecia-me um pagamento justo. À medida que apanhava raízes maiores, pensei em falar com o sindicato para ser ao Kg. Nada melhor do que retirar uma raíz com metade do meu tamanho com as mãos, em terra gelada a ponto da semelhança de escavar numa rocha e com flocos de neve a correrem-me pelo rego a relembrar no que me fui meter e no que viria a gastar em consultas de ortopedia. Trabalhei à volta da base de uma muralha que fora iniciada pelo meu futuro colega, ao qual o Notklaus pediu-me para ser assistente quando ele voltasse.
Quando chegou ao carro, cumprimentei o Tiago, também ele português. Era parecido comigo, de óculos e gorro mas chegava-me aos ombros, sendo que eu já estava habituado a chegar aos ombros dos Dinamarqueses (tenho 1,90m, entroncado). O carro do Notklaus era pequeno mas que bastasse. O único senão era o facto de estarmos a entrar numa lixeira. Era só merda. Desde pacotes vazios cobertos por terra lameada a restos de cenouras, feno e... quase de certeza que merda literal. Agora questionam-se:
"Lixo muita gente tem no carro e é natural os tapetes e mesmo estofos estarem lameados"
Costumam ter lama no tejadilho? Fora do carro, dentro do carro, no porta-bagagens do carro, no porta-luvas do carro, nos cintos do carro, na Seguradora do Carro, nas fotos no Stand Virtual do carro,... Sai mais limpo andar a cavalo e aposto que o combustivel dos dois veiculos era o mesmo, mas no carro a ordem de combustão era a contraria.
O Tiago e eu (com Jennifer Aniston e Owen Wilson) fomos nos apresentando e a falar do que faziamos por ali. O Notklaus pediu que falássemos em português, enquanto ele falava Dinamarquês com a esposa, a Naoseiquantas. Talvez fosse um fetiche sexual deles. Achámos estranho mas assim eu podia comentar à vontade que lhe viria a oferecer no Natal uma esfregona Vileda.
O Tiago já andava nisto há um tempo e descobri que tinhamos mais em comum. Era pai de uma menina que estava em Portugal com a mãe enquanto trabalhava por Aalborg. A menina viria a fazer 1 ano no Natal e, felizmente, ele já tinha o bilhete para passar o primeiro aniversário com a filha. Não contei por imediato que eu ia ser pai, afinal eu próprio estava a digerir. Eu tinha a sorte de ter comigo a minha esposa, mas a verdade é que ainda residiam em mim inúmeras incertezas.
Chegámos à Quinta da Familia Galaró. Houve uma breve converseta de como seria o plano para o fim-de-semana e, claro, como seria o ordenado. Para o Tiago, o mestre da obra, 120kr por hora. Para mim, 100kr, o que era abaixo da média Dinamarquesa mas justo o suficiente.
A quinta era composta por duas moradias encostadas. Ficámos na outra casa, limpa pela minha esposa, e pousámos a respectiva tralha. Eu fiquei no quarto e o Tiago preferiu ficar na sala. Tinha o triplo do espaço mas dormiu num sofá tão mau que era considerávelmente mais saudável para as costas dormir nas escadas da Loja do Cidadão nos Restauradores, incluindo as proteções para impedirem que alguem descance a noite em luxo. Mas não fosse o Tiago ter conforto a mais, dormiu ao lado de um rato morto que estava encostado a uma caixa vazia de Jelly Beans com sabores bizarros. Mas assim estava mais perto do modem para iniciar o seu ritual de falar com a familia por Skype e poder ver a filha à distância, outro clássico de um emigrante ou de quem vai passar o fim-de-semana a Santarém. Eu quis fazer o mesmo mas descobri que levei sem querer os dois carregadores dos portáteis, levando uma descasca valente da minha namorada até ela ficar sem bateria. Mas o amor trabalha de formas misteriosas e eu sabia que, mesmo à distância, com a Lua cheia, ela ainda me estava a odiar.
Eram 7h da manhã quando começámos a preparar o pequeno almoço. Era inútil acordar mais cedo pois não se via nada na rua antes das 8h. O Tiago colheu alguns mantimentos que tinha guardado no armário da casa enquanto que eu saquei da minha arma secreta: a tostadeira que trouxe comigo!
Tinhamos que fazer um muro com, assim por alto, uns 30 metros de comprimento? E 3,50m de altura? Se parecer bastante então é essa medida. Começámos a montar os blocos de betão armado e a encaixar as vigas alternadamente. Depois, enquanto o Tiago limpava o espaço e montava a betuneira, eu fui de carrinho de mão buscar com uma pá a areia e gravilha até o peso ser equivalente à minha consciência. Uns 7 carrinhos depois, fui buscar a água das chuvas recolhida num barril, utilizando 2 baldes partidos. Com o tempo tornei-me bom a fazer massa, segundo o Tiago. E realmente deixava-a com a consistência ideal e boa de Sal. Aos poucos fomos enchendo as colunas do betão, um processo que demorou mais do que previamos, não ajudado pelo facto de o muro já estar maior do que eu e ter de perder tempo a montar o andaime para que eu pudesse chegar com o balde de massa acima. Admito que o Tiago foi crucial para o fim quando os meus braços não podiam erguer mais. Trabalhámos até não haver mais luz, que era a partir das 17h. Às 18h já nem a escuridão viamos. Por nós, trabalhávamos mais mas era impossível ver o que fosse.
Como imaginam, o trabalho era de enorme esforço e quando me deitava sentia as costas a dizerem: "estavas melhor a trabalhar na multimédia". Mas tenho boa memória do trabalho pois tive uma determinação incrível, abdicando de almoçar só para adiantar o que pudesse. A determinação vinha por base de eu sentir que tinha de fazer isto pelo meu filho. É certo que faria o trabalho de qualquer maneira, mas teria tanta força para erguer tantos blocos e carregar tanta areia e cimento? O cansaço no corpo era enorme, mas a minha mente estava melhor do que nunca. A força que o meu bebé me deu foi crucial para aguentar o que viria nos próximos tempos.
Eventualmente desabafei ao Tiago. Falámos sobre a perspectiva dele e sobre a minha, o que eu receava mais e o que planeava (em tão pouco tempo). Pela familia do Tiago, que me recorde (não me sinto confiante da memória), não foi uma notícia fácil de se receber mas que com o tempo acostumaram-se.
Eu gostei bastante do Tiago, serviu de uma espécie de espelho ao que viria a ser o meu futuro, pelo menos até então. É também um exemplo tipico de o emigrante longe da familia que vê o filho crescer num ecrã. Uma realidade bastante triste, mas com a melhor das intenções. Nunca mais soube nada do Tiago. Espero que tudo lhe corra bem pois foi um bom Português lá fora, que muito me ensinou em pouco tempo e que, do que conheci, será motivo de orgulho para a filha. Um Abraço!
Onde eu ia? Ah sim, o trabalho. Apesar de eu estar a receber abaixo da média do setor, era o suficiente para pagar as contas. Estava a receber, em média, 100€ por dia, tendo feito 400€ por quatro dias de longo trabalho. Felizmente sobrou para eu comprar creme Nivea, pois trabalhar com cimento portland queimou-me as mãos. As luvas que tinha disponiveis estavam esburacadas, e o cimento portland tem o bónus hilariante de absorver toda a humidade das mãos a ponto de os meus dedos parecerem mumificados. Além do cansaço, as mãos doiam-me por a pele estar a fazer um esforço tremendo para se esticar. É suposto ter água limpa e corrente à mão para ir lavando, mas só tinhamos o barril da água do cimento. Ao inicio ajudou, assim como no dia em que trabalhámos à chuva, mas quando o barril ficou vaziou a nossa única solução era ir buscar água, 2 em 2 baldes, ao rio gelado do outro lado da quinta.
O detalhe crucial de trabalhar numa obra é que a mesma, portanto, acaba. E não voltei a receber tão bem.
Cheguei a casa com a roupa estragada do cimento, com as mãos arruinadas e com o corpo preparado para descansar na nossa cama de solteiro para crianças do Ikea. Mesmo assim, ainda hoje preferia voltar ao mesmo trabalho, não pelo dinheiro, mas pela força e orgulho que senti, por uma vez.





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