" A única coisa que me vai fazer impressão é cortar o cordão umbilical" A minha mulher estava exausta. Não estava exausta de ter andado muito com dois sacos do Pingo Doce com 6 litros de leite, uma couve abastada e um garrafão de água, isso seria estar cansada. Estava verdadeiramente, em todo o potencial da palavra (até a sua exaustão, até a palavra não aguentar mais), exausta. Exausta, como uma mãe. A minha filha estava no ar, em princípio nas mãos de alguém, a chorar. Existia uma corda branca e esverdeada (a minha namorada, se tivesse consciente, diria que era azulada. Eu daria razão mais tarde porque por questões venosas faria sentido, mas naquele momento era verde e sou eu que estou a escrever), semi-esticada à minha frente. E, como que ao mesmo tempo, uma tesoura flutua. Associei o que aquele conjunto era capaz. O derradeiro momento que eu temia, não me custou nada. E não custou porque deixou de ser "cortar 'um' cordão umbilical". Lembro-me de sentir que a minha mulher e a minha filha precisavam de mim para tomar esta acção. Qualquer pessoa podia cortar, mas a minha presença ditou que seria eu. E sem pensar em nada, fi-lo porque era o que precisava de fazer, como um instinto que me disse "elas precisam de ti". A tesoura não funcionou à primeira (como as tesouras tendem a não funcionar), talvez por eu não entender que material me esperava. Que força devo aplicar? Qual a precisão necessária? E à segunda tentativa, consigo golpear. A vibração sobre o meu polegar direito indicava que eu estava a cortar borracha particularmente elástica. Ao entender do que se tratava, o terceiro corte já tinha a precisão necessária e assim separei a ligação orgânica entre a mãe e a filha. A ligação mais complexa, essa seria intocável. Como eu nunca tive boa nota a Português no secundário, não conseguirei descrever o bem que me soube ver a minha pequena filha ao colo da mãe. Mas sei que admirei muito e que era um momento que a minha namorada merecia depois de tudo. O fruto da sua luta. E, para mim, a oportunidade de guardar um ponto de vista privilegiado. As nossas lágrimas corriam desde que a ouvimos chorar e a voar pela sala de parto, desesperada com a confusão, não entendendo o que se passava. Estava ali tão bem a arrumar umas coisas e, de repente, é expulsa para um mundo cruel. Tudo o que a poderia assegurar que estaria bem era o colo da mãe. Eu mostrava o meu primeiro sorriso de pai, que é dos sorrisos mais parvos que um homem pode ter mas, caramba, se não é o mais sincero. A minha namorada ria e chorava de alegria. Uma última explosão de emoções naquele dia. Nunca fomos tão felizes juntos como neste pequeno, grande momento. Depois da primeira lavagem para retirar o sangue, é colocado um minúsculo gorro sobre a sua cabeça e, em seguida, a minha filha tem a experiência de ir pela primeira vez para o colo do Pai. Assim, encostei-a ao meu peito e segurei com enormes e desengonçados braços algo de uma preciosidade incalculável. A minha Filha. Sossegada como o Pai, sem fazer barulho, tentava procurar conforto junto da capa do Division Bell dos Pink Floyd que era a minha t-shirt. E abriu os olhinhos, revelando dois pontos negros enormes como se eu fosse um Deus a observar dois universos lado a lado. A ciência confirma que eles não vêem mais nada do que, no máximo, vultos ofuscados. Segundo os estudos que li, perguntaram a vários homens e mulheres entre os 25 e os 40 anos sobre o que viram assim que nasceram, ao que a maioria respondeu: "tomara eu lembrar-me do que jantei ontem, quanto mais", concluindo assim um estudo sobre o olhar do recém nascido suportado por uma esmagadora percentagem. Mas eu acredito que só vejam vultos, e comprovo com vários exemplos de pessoas por quem passo no meu dia a dia que, para o meu olhar, não passam de manchas. Eu quis ser um pai realista. Eu disse a mim e a quem fosse, em todas as oportunidades que tive, que se a minha filha nascesse feia, eu iria admitir. É impossível que todos os pais tenham filhos lindos. As minhas sinceras desculpas aos pais, mas eu fui colega de alguns dos vossos filhos e posso testemunhar que se não nasceram feios, estragaram-se muito cedo. Eu próprio não era em nada atraente, especialmente quando abria a minha boca e mostrava um comité de dentes que não se entendiam. A minha maior inspiração para esta atitude foi a minha avó Anita. Conta-nos sempre sem qualquer dúvida pessoal que quando o seu filho (por coincidência o meu pai) nasceu, era feio. Mas não era só feio. Era "Ai credo nosso Senhor me perdoe" feio. A minha avó, no meio das dores e sofrimento, não se deixou enganar com as desculpas de o bebé ter passado 9 meses no escuro, cheio de humidade, passando por um canal estreito e recebido por o que provavelmente terá sido uma senhora cheia de verrugas e má educação. É claro que qualquer um faria cara de babuíno. Mas a minha avó considerou inadmissível, especialmente por todo o trabalho que deu fazer o meu pai, assim como o dinheiro gasto em tratamentos de fertilidade que, na altura, provavelmente apenas consistiam em fazer sexo quinzenalmente após um jantar à base de alecrim e dentes de alho. Só consigo imaginar após a revelação do pequeno Gremlin a cara de decepção que a minha avó terá, compreensívelmente, feito. Ao fim de uma hora de descrição de todos os defeitos do repugnante que era o meu pai, a minha avó faz especial atenção em referir que, [demasiado] tempo depois, o meu pai fez-se uma criança linda. Depois, termina a conversa reforçando o quão feio nasceu o meu pai para que entendamos a margem do contraste. De facto, o meu pai foi um bebé bonito e originou uma criança linda. Daí a minha dúvida sobre a falta de bebés feios. Não há progresso, se a criança é feia é porque deve ter sido um bebé horrível. Aos pais que se sintam na dúvida, proponho um jogo divertido lá para casa: peguem num microfone, num placar e numa mesa e vão com os vossos amigos para o Largo Camões. O placar deverá dizer "Prova Grátis de Pastéis de Nata". Digam às pessoas que "isto é para as manhãs da Comercial" e mostrem fotos de vários bebés. Cada um tem de mostrar, no mínimo, três bebés, sendo um deles o filho verdadeiro e os outros fotos aleatórias da internet. Se tiverem três filhos, não se preocupem com fotos de outros bebés além dos vossos; vai ser mais divertido assim. Agora, perguntem à pessoa qual é o mais bonito e qual é o mais feio. E divirtam-se. Se não se sentirem confortáveis com a comparação entre amigos, perguntem só qual é o mais feio. Se alguém perguntar pelos pastéis de nata, digam: "isso é ali na Manteigaria". É importante que este jogo seja respondido por quem não vos conhece porque se forem homens vão ouvir "Vê-se mesmo que sai à mãe", o que é considerado por imediato que o pai está a ser chamado de feio mas se o homem não souber ler níveis de sarcasmo, corre o risco de não descobrir que o filho é feio como a mãe. Provavelmente o meu pai foi a criança mais linda de toda a minha família, tanto do lado do meu pai como do lado da minha mãe. Até nascer a minha filha. Reporto com felicidade que ela não se parecia com ninguém. Não foi trocada porque o choro tinha o mesmo envelope sonoro do bebé que se foi lavar ao bebé que voltou. E, caso eu ainda tivesse os meus instintos animalescos devidamente apurados, de certeza que notava que ainda cheirava ao mesmo. Era sem dúvida o mesmo bebé que desempenhou o fenómeno de sair da minha mulher. E a minha felicidade advém do orgulho daquele bebé não ser possível de se reconhecer nem com o pai ou com a mãe mas com a própria. Portanto, as histórias de "é a cara chapada do pai" ou "é tal e qual a mãe" (o pai tende a ser adjectivado com maior violência como que sendo maioritariamente um defeito da criança, o que eu compreendo) não se verificaram. Não durante, diria eu, um ano. Digo um ano porque desde então, e escrevo este parágrafo tendo a minha filha uma relativa proximidade dos três anos de vida, pouco mudou. Sempre cada vez mais linda, o que é fisicamente impossível mas ela lá decide o que quer fazer da vida dela; pouco importa a ciência aqui. Talvez a característica que se notava mais assim que nasceu fosse o seu nariz que era, definitivamente, do lado da mãe. Só com um pouco de crescimento é que associei ao nariz do irmão da minha namorada. É tão o nariz dele que se processá-la por direitos de imagem, é possível que o caso dure ainda alguns anos com o fundamento. As orelhas tendem a dizer que são da mãe, mas estão todos enganados. As orelhas são uma mistura dos pais. Nem grandes, nem pequenas, mas sim perfeitas. Aliás, foi o que mais me espantou em recém-nascida: o design das orelhas em miniatura mas cheio de precisão. Os olhos talvez tenham alguma influência minha mas a maior percentagem biológica é da minha própria filha. Eu talvez confunda por ser bastante expressiva desde bebé. Entendo que todos os pais pensem o mesmo de cada filho, mas lembrem-se que ao contrário dos filhos dos outros, a minha é perfeita.
Onde a reconheço mais como minha filha, fisicamente falando, é a sua expressão séria e de aborrecimento. Os lábios dela inspiram-se no design dos meus e ganha umas pequenas bolsas de ar entre os molares de maneira a que as bochechas fiquem mais volumosas. As faces de quem não quer ser incomodada e de quem está absolutamente morta de tédio com o excesso de interação medonha, é do pai. Só poderei ser mais babado quando tiver 90 anos. Quando está feliz a ponto de sorrir, aí sim, é totalmente a mãe dela. Depressa a câmara lenta capta a (ainda assim) rápida troca de orgãos do rosto e a minha filha mostra uma alegria como se fosse a mãe em formato pequenino. E que prazer poder ter a honra de ver a mãe dela sempre que a minha filha estiver feliz. E também eu fico feliz com esta sintonia. Quando está feliz, é a mãe, quando está com vontade de se matar só para ver se a experiência é mais divertida do que conviver com o seu redor, é o pai. Eu consegui, portanto, ter o que queria: alguém que se desinteressasse tão rápido como eu e, a mãe, conseguiu que ela tivesse caracóis. Eu sei que sou o pai dela, mas ninguém consegue provar o contrário: ela tem o cabelo mais bonito que a Terra conheceu. Eu escrevi no capítulo anterior que a epidural não funcionou na minha mulher. Não foi verdade. Só não funcionou quando era preciso. Depois do parto, a minha namorada sentiu-se dormente a ponto de não sentir o alfaiate a coser. O que terá sido uma sorte pois viemos a descobrir tarde demais que a costura foi horrenda e teve de ser desfeita. É por esta altura que a enfermeira diz: "E agora o Pai vai lá fora ligar à família!" Ao que eu respondi: "E o Pai quer que a família se fo-.."; bem, não podia dizer asneiras, havia uma criança presente. Disse antes: "o Pai fica aqui, a família pode esperar" e procedi a sorrir para a minha filha enquanto me deliciava com o primeiro colinho. A enfermeira ficou algo aborrecida. Ela estava, na verdade, tão interessada que eu ligasse à família como eu. O que era importante era que eu saísse para me poderem expulsar mais cedo pois já passava da hora de visitas e eu não podia continuar ali após o parto. Consegui uns minutos preciosos depois da festa das 19h55, mas antes das 21h eu já estava a caminho de casa. 19h55. Em homenagem ao pai, a minha filha era também contra horas redondas. Eu gosto de combinar convívios como marco os meus despertadores: às 43, às 59, às 32,… Mas a altura chegou e tive que me despedir de duas senhoras, uma que ainda mal tinha acabado de conhecer. Tirei a bata e fui para o elevador. Desci o elevador com o mesmo rapaz com quem contei os anos a passar até poder entrar na sala de parto. Estive quase para dizer "Parabéns", mas decidi aproveitar o silêncio de dois pais idiotas e babados com o que ganharam naquele dia. Pelo caminho, telefonei à minha avó Anita e contei-lhe que já viveu o suficiente para chegar a bisavó. "Próximo passo: trisnetos!". Depois, contei à recém Madrinha Ana e, antes que me esquecesse, informei a minha mãe. Pelo meio, tinha uma mensagem do meu sogro que estava indignado por ainda não saber nada, o que foi muito engraçado, especialmente tendo em conta o que revelo no próximo capítulo (eu tenho isto tudo muito bem pensado, estão a ver). Dirigi-me ao meu restaurante típico, pedi uma dose de hambúrgueres no prato e liguei à avó da minha mulher para que ela espalhasse pela aldeia, o que terá sido a primeira vez que lhe liguei directamente. Já em casa, ligo o computador e escrevo no Facebook um texto enorme entitulado "O Palco da Vida", explorando os temas que referi no capítulo anterior sobre não ter vontade de atravessar a cortina à excepção daquela que me separe da minha filha. E escrevi também o mais publicamente que consegui sobre todo o orgulho que senti pela minha namorada. E foi orgulho genuíno. Senti mesmo admiração durante e após o parto. Foi um dia longo, mas o parto durou apenas 30 minutos, o que em relatividade de grávida deverá ter sido um parto de segunda a quinta-feira. Escrevi sobre o orgulho porque fui o caminho todo a digerir o que pensei da minha mulher durante o grande momento, e como ela conseguiu estar não só à altura como foi capaz de impressionar e brilhar contra tudo. Nunca questionei que ela não fosse capaz, nem sei de alguém que não seja capaz de prosseguir com o parto, o bebé irá sair sem permissão de uma maneira ou de outra, mas, ainda assim, ela fascinou-me com toda a força que me demonstrou. E isto vale a pena ser relembrado. Vale a pena que eu lhe relembre os detalhes que lhe custaram para que saiba o quão perfeita e eficaz ela conseguiu ser, devendo levar esse crachá de honra para o resto da sua vida e pôr em causa os obstáculos que tenha de atravessar pois nenhum será, no fundo, tão exigente. Excepto, talvez, caso venha a ter gémeos. Aí tá lixada. Ao deitar-me depois de um dia enorme, recebo algumas fotos ilegais que a minha namorada tirou à nossa filha a dormir. As suas primeiras fotos, e o seu primeiro soninho no mundo. A minha filha nasceu e não se pareceu com ninguém. Não consigo pensar numa forma mais bonita de se vir ao mundo. Eu tive uma filha bebé, e ela foi perfeita em tudo! Testemunhem-me!






