19 November 2017

Episódio 13: Um herói da classe trabalhadora | Ou: Não podes ter o teu pudim sem comeres a carne toda





 Eu sentia vários relógios na Dinamarca: o relógio do bebé nascer, o relógio de arranjar trabalho, o relógio de pagar as contas, o relógio de trazer a minha mulher de volta, o relógio da Universidade,... Já em Portugal, os relógios eram diferentes. Os objectivos não mudaram muito, mas pareciam-me diferentes. Estava meramente focado em arranjar trabalho, tanto que o tempo do bebé nascer me pareceu mais lento apesar de estar mais próximo do que nunca. Faltavam poucos meses e quase que nos aproximávamos dos temíveis 7 meses mas de alguma forma eu sentia que houve um pequeno travão no tempo e eu podia respirar por um pouco que fosse.

A minha regra para arranjar trabalho sempre foi a mesma: sinto-me confortável a fazer seja o que for desde que não seja a lidar com o público. Gosto do chamado "estar na minha" e, acima de tudo, trabalhar ao meu ritmo. Não que eu demore a trabalhar, pelo contrário, sou mais rápido se for feito com um objectivo claro a ser terminado ao final do dia. Uma vez estagiei numa empresa como designer gráfico (soa melhor do que o trabalho que realmente fiz) onde eram-me entregues perto de 50 posters e flyers de manhã que eu teria de fazer até sair. O resultado era eu acabar até à hora de almoço e sair mais cedo, às vezes acabando por almoçar em casa. Não era trabalho bom, a preferência pela empresa era precisamente criar spam, mas era trabalho concluído, que era o importante para o meu Patrão que não me pagava nem a mim nem aos 20 estagiários do IEFP. Lidar com o público, no entanto, era algo que jurei nunca fazer. Detestava a ideia. Além de eu já ser bastante envergonhado, a ansiedade de pensar em interagir com alguém que espera de mim um nível de exigência que tenho de corresponder, agonia-me de nervosismo. 

E foi por isso que eu achei uma brilhante ideia candidatar-me para trabalhar num hospital a atender o público.

Ainda na Dinamarca, um amigo meu, o Engenheiro Peres, falou-me que estavam a recrutar e eu aceitei candidatar-me. Na altura não ponderei se me sentiria à vontade pois, por mais tímido que fosse, a possibilidade de ter uma filha sem qualquer emprego era mais desconfortável. Enviei a minha candidatura e aguardei, tendo também enviado para mais alguns sítios como salvaguarda.
Enquanto as candidaturas estavam a marinar, era tempo de aproveitar estes últimos dias de regresso e de preparação para ver os meus velhos amigos. Um dos primeiros idosos que encontrei foi o Mestre Pipas, o Engenheiro e a Dra. Rita, a Doutora. Falámos sobre os nossos planos, desabafámos chatices que nos circulavam e, mais importante, voltei a beber café. Ganhámos ainda uma camisola de bebé da Abbey Road, por onde o Mestre passou para fazer seja o que for que os Engenheiros fazem durante as férias. Engenheirias, presumo.

E por falar em roupa, foi hora de lavar e estender a roupa da nossa filha pela primeira vez. 



Se eu já achava as meias pequenas, então quando estas saem da máquina parecem dedais. Peça a peça, fomos estendendo e o resultado deixou-nos emocionados. Ver a roupa da nossa filha pendurada é uma afirmação de que algo está para existir e terá a sua presença no mundo. Já existia, claro, mas num ovo Kinder. Agora imaginávamos melhor um possível tamanho e espaço que ocuparia naquelas roupinhas, mas tínhamos de ser criativos sobre como seria a nossa filha, além de perfeita, naturalmente.

E mais importante, a quem daríamos esta roupa toda
assim que deixasse de lhe servir 45 minutos depois de experimentar?


No dia seguinte, a manhã começou com um som diferente. Habitualmente, naquela residência acorda-se com sons de animais de quinta a serem castrados, ou como se diz em Portugal, vizinhas a falarem de plantas. Mas desta vez foi diferente. Houve um aglomerado de vizinhança atenta ao pormenor de haver uma roupa em escala. Maravilhadas, comentavam o tamanho dos botões, dos laços e dos cabides, imaginando como ficaria bonita naqueles conjuntos. De facto, o simples acto de estender a primeira roupa de bebé toca a todos, simbolizando que vamos ver mais um ser humano a correr de um lado para o outro e a pagar impostos.

E assim, recebi a chamada. Fui informado que seria entrevistado para o trabalho no Hospital. "Bolas!", pensei eu, como alguém que recebe uma proposta de trabalho, "agora tenho mesmo que fazer a barba!" . Apesar desse contra, era uma boa notícia e certamente viria a atrair uma maré de boas graças. A partir de aqui, só podia correr bem.

Senti, porém, que algo faltou nesta experiência de pai. Fui presente durante a gravidez desde o início, mas não presencialmente. Estive no início da descoberta e das decisões difíceis, mas falhei as três ecografias, tendo assistido em diferido e acompanhado de um sorriso virtual da minha mulher. Felizmente, a Dra. que realizou a última ecografia decidiu que poderia ser feita uma quarta, ao qual eu pude comparecer. E lá estávamos: eu, a Esposa, a Filha e a Madrinha da Filha da Esposa, prestes a ver um episódio da segunda melhor série de tv de todos os tempos. Nada consegue destronar o Zé Gato, afinal de contas.

A Dra. que realizou as ecografias é fácil de ser reconhecida por quem já esteve grávido de um bebé humano: é a melhor ecógrafa de Lisboa. Além de ser uma velhota simpática que já viu mais bebés do que muitos traficantes, tem toda a atenção e disposição ao pormenor, sabendo que, apesar de cheia de marcações, cada ecografia é um momento inesquecível para os pais. Afinal, não estamos em família para ver se temos algum nódulo de gordura no cotovelo, mas sim um pedaço de amor com membros a sorrir e a engolir líquido amniótico a mais.
É formidável estar acompanhado pela descrição da médica sobre o que estamos, de facto, a ver; sendo que até aqui só tinha visto imagens em silêncio. O momento alto foi, obviamente, escutar o coração da minha filha que já batia tão rápido como uma mulher de 60 anos a ignorar os plágios do Tony Carreira no Terreiro do Paço, mas também devo referir o momento obrigatório em que a médica pergunta ao pai se sei que órgãos estamos a ver. Habitualmente, serão os genitais para apanhar o pai desprevenido e causar algum embaraço. Confesso que me deram algumas dúvidas sobre se era efectivamente uma rapariga já que o tamanho dos testículos intimidaram-me, mas afinal eram apenas dois ovários saudáveis.

O que é indescritível é a sensação de querer cumprimentar aquele bebé, começar já a pegar nele e dar colo. Sair da clínica sabendo o que vi já não seria o mesmo. Tinha agora a percepção de como estava a minha filha e uma melhor certeza de que tudo estaria bem, assim assegurado pela Dra.

Entretanto, chegou o dia de eu me dirigir à sede do hospital para a minha primeira entrevista, sendo esta em grupo. Não vejo qualquer benefício de fazer uma entrevista em grupo além de a empresa despachar uma série de candidatos. Talvez para uma empresa de vendas em que desejem apanhar a pessoa que não se cala, mas ainda assim não significa nada. Seja como for, foi a minha estratégia, ser o primeiro a responder a tudo, mesmo que não fizesse sentido ao início. O que, para minha sorte, fez. Excepto uma questão: o que dizer a um senhor que já fez três pedidos e ainda não teve resposta? O que eu respondi, em primeiro lugar, foi que pedia desculpa. A minha inocência aqui, olhando para trás, foi hilariante. A ingenuidade tinha o coração no lugar certo, mas faltava-me conhecer a realidade de um serviço administrativo com esta dimensão e até que ponto as nossas expectativas de resposta são válidas.

Engonhámos todos um pouco sobre a questão e o debate de ideias foi-se desenvolvendo até que comecei a pensar fora da caixa e quebrei o sistema: "mas esperem lá, no enunciado não diz que nós não conseguimos resolver a situação. Portanto, tento resolver a situação mesmo que já tenham tentado antes". E assim julguei ter vencido o concurso da praça pública, já que os exercícios anteriores foram absurdamente fáceis.

No entanto, não estava confiante. Olhando em volta, eu era a segunda pessoa menos atraente do grupo. A menos atraente era o outro homem, sendo o resto do grupo meramente composto por senhoras com abundância em maquilhagem. Eu nem um blush tinha, apenas levei o que me restou do Hugo Boss enquanto estive na Dinamarca. As minhas chances não eram favoráveis.

Mas tenho de destacar a pergunta merdosa que cai sempre: "Porque querem trabalhar connosco?" A única resposta verdadeira é "porque preciso de dinheiro e a vossa concorrência ainda não me respondeu ao e-mail de ontem". Mas quando chegou a vez do senhor, já na casa dos 50, ele foi honesto e disse porque precisava de trabalho. Não em tom jocoso, mas sim em desespero por já não saber por onde procurar. Os 50 anos não foi um factor eliminatório. A razão de eu destacar esta história foi o tremer de voz quando o disse. O desespero era palpável e não consigo imaginar quantas entrevistas terá frequentado nem a pressão horrível que devia ter em casa. Foi o pedaço que mais me marcou naquele dia e saí a pensar no futuro do senhor.

Tínhamos agora o ninho montado. Talvez faltassem alguns detalhes, mas já podíamos receber a nossa Rainha. E foi então, durante uma noite, que senti o primeiro pontapé no meu nariz, após tantos anos de vida no Liceu. Nos primeiros pontapés, visualmente, só se vê a barriga a tremer um pouco, como alguém que não tem muito saldo mas manda um toque para que liguem de volta. Era assim tão rápido, nem dava tempo para entender o que estava a acontecer, apenas o rescaldo. Tanto que o primeiro pontapé, eu não apanhei, apenas fui chamado à atenção que tinha acontecido, sendo que, para minha surpresa, quem se apercebeu do pontapé foi a mãe do próprio bebé, doravante conhecida como a minha namorada. Na realidade, ainda estando eu na Dinamarca, assisti ao momento através de Skype quando a minha mulher sentiu o primeiríssimo pontapé, na altura ainda confusa sobre se teria sido realmente um pontapé ou se foi a nossa filha a arrotar que nem uma besta pequenina. Mas agora tínhamos a certeza, era um pontapé e a partir de aqui viria a começar o verdadeiro massacre nas costelas da minha Senhora.

Algum tempo depois, fui chamado para uma entrevista, desta vez no próprio Call Center do Hospital. Mas na realidade não é um Call Center. É um Contact Center. Um Contact Center é um Call Center mas mais profissional. Ou assim queremos transparecer, a verdade é que a imagem à sociedade é a mesma. No edifício, aguardei por ser chamado por uma senhora que me encurralou num pequeno estaminé onde ficou a saber tudo sobre mim. O meu nível de experiência a atender o público era nenhum, mas fiz a velha jogada de vender o peixe com o que sabia fazer. Afinal, eu trabalhei em palco como actor e como apresentador, logo, sabia interagir com diferentes pessoas. Acontece que há uma distinta diferença em lidar com alguém que te acha o pior apresentador do mundo e alguém que está à espera de receber 1500€ de reembolso. Um tende a ganhar maior razão em utilizar um vasto vocabulário com o sufixo 'alho'.

Depois de enganar que tinha experiência na área de comunicação social e ter um forte leque de software onde absolutamente nada seria útil para a minha função, dei o meu trunfo: disse que, quando chego atrasado, é quando chego a horas. E era verdade, eu preferia chegar uma hora mais cedo e andar às voltinhas feito parvo para que, na eventualidade de apanhar algum congestionamento nos transportes, ter a vaga chance de chegar em cima da hora na pior das hipóteses. Claro que, com o passar do tempo, vou-me desleixando mais, mas tal como conhecer os sogros, o que conta são as primeiras impressões e se trabalhas ou não em multimédia. O facto de ter falado que um dos meus pontos fortes era chegar a horas fez com que imediatamente conquistasse a entrevista pois acabei por antecipar um dos tópicos a serem falados posteriormente.

 Apesar de eu necessitar daquele trabalho desesperadamente para suportar a minha família, não estive em momento algum nervoso. Ir com a atitude de "se conseguir, consegui, se não conseguir, há mais trabalhos" funcionou como forma de misturar descontracção e confiança suficiente, levando-me a responder mais ao tom de "eu sinto que tenho capacidades para desempenhar este trabalho", evitando o fabuloso "o meu sonho desde pequeno é aturar reclamações por merdas que não fiz em nome da vossa empresa".

Saí da empresa confiante que tinha chances, talvez por não ter visto directamente concorrência mais atraente do que eu. E, assim, estava a nossa vida a decorrer bem. Estava junto dos meus amores, o nosso lar estava pronto o suficiente para receber o fruto do ventre da minha namorada e estava bem lançado para obter um emprego.

Estava, por uma vez, tudo a correr bem connosco.

Até os cafés me saiam com um coração


Só foi pena termos sido despejados de casa.