Senti-me em casa. Não com a minha chegada ao aeroporto, não com a minha família a abraçar-me. O que me fez sentir em casa foi entrar no táxi e ouvir ofensas num trânsito mais coagulado que a nossa economia. Obviamente estou a exagerar, ainda dava para as motas passarem. Mas agora sim notava a diferença do espaço em que me encontrava. Era tudo tão familiar por onde olhava com apenas uma novidade que sentia: poluição. O ar no Marquês pesava-me os pulmões como nunca senti antes, uma notória contradição à pureza do ar que senti em Aalborg onde a bicicleta tem prioridade e os automóveis são vistos como cães que não podem entrar na loja excepto se fizer muita falta ao dono para conseguir movimentar-se.
Cheguei a casa, pousei as malas e não houve tempo para contemplar o meu lar pois havia uma dose de hambúrgueres à minha espera no restaurante.
Cumprimentei os donos do restaurante, fiéis amigos, ao que me comenta um dos donos: "estava a ver que não chegavas a tempo". O pensamento de muitos, ou talvez de todos. A barriga da minha esposa estava a ficar madura e foram 3 meses que passámos longe um do outro, o que em anos de cão capado dá algo como 76 anos sem nos vermos. Perdi três ecografias, tendo a terceira ocorrido na semana em que regressei mas por a Vueling me ter adiado a data de voo não foi possível regressar como previsto. Felizmente, já era esperado ser feita uma quarta ecografia, ao qual já estaria presente para ver a minha filha em directo. Mas, por agora, tinha de apreciar a minha tão aguardada dose de hambúrgueres e terminar com um saudoso cafézinho.
Já em casa, tínhamos de abrir as malas e constatar que tudo o que era roupa estava ensopado por ter ficado à chuva no aeroporto de Barcelona. Mas pior, a minha esposa repreendeu-me pela roupa que não trouxe de Aalborg, tendo deixado ficar a maior parte das calças novas e trazido as velhas. Na altura não pensei tanto no que estava a arrumar mas sim no que conseguia arrumar até a mala não se aguentar fechada, e ainda hoje me custa em pensar no que deitei ao lixo. Estou certo que ela nunca me perdoará. Eu sei que não, pela forma como o assunto volta quinzenalmente. Na altura de arrumar de vez e sem regresso, é importante saber arrumar mas eu estava na ansiedade de conseguir arrumar o que fosse. Eu estava mais preocupado com a quantidade do que com a qualidade o que, falando em roupa, é sempre um assunto polémico.
O meu cansaço era muito, mas ainda havia algo importante a fazer: montar o berço da nossa pequenina. A minha esposa aguardou pela minha chegada para iniciarmos o ritual mais sexista e mais perfeito que existe. Eu, o homem, o pai, monto o berço para assegurar a minha filha, dando um espaço onde pode dormir. A minha esposa, mulher, a mãe, faz a cama, dando um espaço onde pode descansar e sentir-se aconchegada. O simbolismo é incrível e é dos pequenos passos que mais cimentam que sim, vai haver mais uma pessoa nesta casa a pagar contas. Claro que nunca se poderia inverter os papéis na construção do ninho pois eu nunca conseguiria fazer uma cama merecedora da minha filha já que os lençóis estariam no chão e os cobertores a fazer de tenda.
Este pedacinho de alegria viria, porém, a ser desafiado em muito pouco tempo. Estava planeado um almoço de família em casa dos meus pais e aproveitei para convidar uma familiar próxima para me ver pois entretanto eu estaria ocupado a procurar trabalho. O que se seguiu no almoço foi o princípio de uma catástrofe que de certa forma eu esperava mas não nestes termos.
Eu e a minha esposa tínhamos as nossas razões pessoais, mas mesmo sem o nosso motivo principal; e que me perdoe o leitor mas não poderei referenciar, é apenas para reforçar que tínhamos sim uma razão mais forte; estávamos de acordo com a nossa preferência: Não queremos ninguém na maternidade. E assim, a minha esposa pediu à minha familiar que não fosse à maternidade, apenas iriam os meus pais.
É sempre das frases mais divertidas para se dizer à família, próxima da hilariante "não iremos baptizar com p" ou também a muito divertida "vamo-nos casar para o mal de todos". O não querermos ninguém na maternidade retira a importância de várias pessoas e rouba-lhes a memória e a oportunidade de poder dizer "já estive com ela" "com a mãe? Como está" "Quem? Ah, sim, também lá estava!"
À nossa frente, este familiar foi compreensivo, para minha satisfação. Mas nas costas, a pessoa frontal (sempre estive para descobrir de onde veio este título fictício), tem uma epifania contra a minha mulher e o facto de eu ter ficado calado durante o almoço e não ter defendido os interesses da minha familiar. Mais tarde, por telefone, recebi uma lição da minha mãe em como, sendo um casal, eu também tenho que defender os meus interesses e não ficar calado. Eu concordei com a minha mãe e decidi, assim, defender os meus interesses de força maior fora da opinião da minha namorada. Eu disse que, por mim, nem os meus pais estariam presentes.
Com ou sem motivo, era verdade. Eu não queria mesmo ninguém presente. A razão é simples: realisticamente, pode correr mal e pode correr muito mal. A última coisa que será preciso preocupar-me é com as visitas que estão à entrada do hospital para saber qual é o quarto. É um momento em que quero dedicar-me à minha mulher e à minha bebé, nada mais ao redor me interessa. Mas, conforme referi, havia um outro segredo. Estava relacionado com motivos de segurança, ao qual, com permissão, revelei à minha mãe já que iria estar presente. A partir de aí, a minha mãe defendeu-me até ao fim e ainda no momento em que escrevo este parágrafo não fala com a minha familiar pois a mesma decidiu culpar a minha mãe de tudo ao invés de ter falado comigo. O que continua a não fazer sentido mas vá-se lá entender.
A razão de eu lavar um pouco a roupa suja publicamente, que poderia ser ainda mais lavada, engomada e posta num cabide, deve-se a ser importante referenciar, uma vez mais, que a família não é assim tão importante só pelo estatuto e não estarão sempre do nosso lado. Foi um tema que provocou muitas dificuldades, especialmente para a minha mãe que ainda hoje recupera, ainda que eu e o meu irmão estejamos surpreendidos com a força e determinação com que o fez. Mas, a verdade de eu não ter respondido a altura foi simples: a minha namorada vai ter uma bebé. Ou nos respeitam, ou não me interessam. Puro, e simples egoísmo, que além de delicioso é importante ocorrer. A segunda tarefa a ser tratada quando se espera um bebé, além de assegurar que será acolhido num lar seguro e preparado para receber todas as necessidades, é estabelecer os limites. Há quem o faça bastante cedo e com a idade é mais fácil de haver respeito por já haver uma ideia do que a pessoa tolera ou não. Em jovem, é mais complicado anunciar as regras por parecer cortar o cordão umbilical abruptamente o que leva à famosa frase "estás diferente". Aconteceu comigo quando apresentei a minha relação aos 20 anos. Não estava diferente, simplesmente tive de delinear o meu perímetro e implementar as ideias que sempre tive sobre uma relação. Com a chegada de um bebé, falamos naturalmente de uma circunferência maior.
É fácil ganhar o receio de pais jovens não saberem o que fazer com um bebé e sufocar com auxílio. A verdade é que ninguém sabe o que fazer com um bebé. Ninguém. Mas todos aprendem, independentemente da idade, porque têm de aprender. Claro que, como na escola, só aprende quem quer. Mas a importância dos limites serve para deixarem os pais serem pais. É importante arregaçarem as mangas e conhecerem o bebé que têm, além de que serão os pais que maior saudade sentirão daqueles momentos iniciais, justificando que queiram estar sozinhos para saborearem todo o prazer que é ter um filho. E fazê-lo também. Convém que os deixem estar sozinhos quando é para fazerem um filho pois também dá prazer e torna-se bizarro se não os deixarem em paz. Que o diga a minha avó.
Por isso eu perdi um familiar e pela mensagem que enviou à minha mãe esse familiar alegadamente morreu. Estranho ter morrido e mencionado que iria mudar de telemóvel, nunca percebi a relevância. Se está morto, não vou telefonar. Aliás, nem em vivo me atendeu, certamente não será em morto. Uns tempos depois voltou a comunicar pelo mesmo número. Se calhar apercebeu-se que dava trabalho mudar o número em todos os hospitais, contractos e em lojas onde tenha cartão de fidelidade. Podemos nunca vir a descobrir, mas aparentemente há boa rede no Além portanto nem tudo são más notícias.
A leveza com que eu falo em perder familiares pode parecer bizarra, mas da mesma forma eu celebro quando a ganho. Família é um conceito. Ter um DNA semelhante não é o suficiente para celebrar contractos vitalícios. Assim fosse e os órfãos nunca teriam pais na vida. Não é verdade. Mãe é mãe, mas mãe pode ser qualquer pessoa. Quem o dita não sou eu ou outra pessoa, é quem é filho. Deste modo, tenho outros tantos irmãos que não são de sangue mas viveram a mesma infância que eu. Há quem os chame simplesmente de amigos, e há quem os conheça. Pessoas que estão a Km de distância e não há um dia em que não me passe uma memória a relembrar. Foi deste modo que lhes contei a notícia: "Vais ser tio(a)". E, felizmente, a minha filha tem imensos tios. A família são o que considerarmos que seja e que precise ser. É certo que eu e a minha esposa teremos uma tarefa complicada quando o nosso rebento precisar de fazer uma árvore genealógica no primeiro ano com massinhas, afinal tem uma quantidade enorme de tios e outros espaços preenchidos pelos colegas poderão estar vazios para ela, mas eu gosto de pensar que será criativa e irá encher a cartolina com placas de lasanha.
A relevância de eu ter contado isto é tanta como quando disseram num funeral, meses depois, que a minha mãe queria ver o tal familiar no lugar do morto. A minha mãe sempre teve tendências de assassino em série, é verdade, e toda a gente sabe. Mas há uns bons anos eu e o meu irmão tivemos uma conversa séria com a minha mãe sentados no sofá desconfortável da nossa sala onde pedimos para ela parar de matar pessoas porque parecia mal. Ela jurou que não voltaria a matar ninguém, por isso a observação proferida no funeral foi apenas ignorante. A minha mãe não queria ver ninguém no lugar do morto. Apenas queria o mesmo que o filho mais novo: que houvesse menos parvoíce no mundo.
Isto tudo para verem o que desencadeou eu ter uma vontade: não quero ninguém na maternidade. Depressa, comadres zangaram-se; a minha mãe virou ovelha negra na família, fazendo companhia ao meu irmão que já era uma ovelha de pêlo escurecido; e passámos a ter duas pessoas na família que adoptaram a frase: "pois, já sei, eu é que sou o mau". O primeiro passo é admitir. Iria parecer horrível vindo de mim.
Por uns breves instantes, eu e a minha namorada ponderámos: será que devíamos desistir e fazer a vontade em deixar que venham à maternidade? Os instantes foram de facto breves: não. Aliás, só me deu mais certeza que não queria ninguém.
Se a família da minha esposa teve defeitos quando soube que o técnico de multimédia estava oficialmente preso à família por razões naturais, ao qual a minha família celebrou por eu afinal gostar de mulheres, o inverso ocorreu com estas decisões. A família da minha mulher foi compreensiva e aceitou esperar pelo momento oportuno para conhecer o novo membro, podendo aproveitar com todo o tempo possível. Já a minha família comportou-se como um grupo de crianças mimadas que não sabem entender o motivo do não, só ouvem que não e pronto. Claro que estou a generalizar, houve sempre familiares compreensíveis nos dois lados e nos momentos cruciais.
A minha família também aprecia apontar as forquilhas à minha namorada como culpada de seja o que for, inclusive os testes militares na Coreia do Norte, mas a burrice impede-os de ler entrelinhas. A minha namorada pediu que não fossem à maternidade. Já eu, disse que não queria ninguém na maternidade. Uma diferença drástica. A minha namorada não queria mas disse-o de forma a não ferir ninguém, embora não tenha de haver motivos para ferimentos, mas sim em vã esperança de compreensão alheia. Eu mantive-me calado naquele instante porque era de opinião mais assertiva: não quero. Simplesmente não quero. E houve mais umas regras que defendi perto do nascimento, ao qual irei descrever quando chegarmos a esse mítico capítulo.
Aos novos pais, por favor, defendam os vossos interesses. Não se preocupem com as pessoas mais sensíveis pois não têm nada que ser sensíveis. É irrelevante. Permitam o que quiserem, proíbam o que bem entenderem. É importante darem a conhecer as regras e um bom exemplo que posso indicar será no combate entre o horário de visitas e o horário de sono do vosso filho. Há sempre quem obrigue que acordem o bebé pois tem tempo para dormir, é mais importante sentir o bigode da tia. Isto ocorre fundamentalmente por considerarem apenas 2 horários: o deles e o do bebé, que é facultativo. Mas a realidade é que existe um terceiro horário: o dos pais. O momento em que precisam de descansar e de estarem um com o outro a ignorar o telefone por um bocado. Dou o exemplo de uma prima da minha esposa que no primeiro bebé permitiu tudo e arrependeu-se. Ao segundo filho só deixou que pudessem interferir na rotina meses após o nascimento. Uma decisão que eu respeito imenso e cada vez mais compreendo.
Não aconselho que sigam o mesmo exemplo que nós. Não se trata disso. Apenas partilho exemplos do que correu bem e do que correu mal connosco. O que defendo, sim, é a importância do que vocês considerarem como necessário para que consigam ser os melhores pais possíveis pois é o vosso mecanismo para serem bem sucedidos em algo que não compreendem para já mas que estão a fazer por isso. Temos sempre que pensar nos outros mas este é um momento em que têm de pensar apenas em vocês pois, e acreditem, estas pequenas decisões ao início irão ditar a vossa capacidade de gerir a relação familiar de três que está prestes a ocorrer. E é importante que os familiares e amigos aprendam a respeitar as vontades todas e a fazer menos birras pois a mulher durante e após o trabalho de parto não pode estar com quaisquer preocupações. Só existe o bebé, nada mais. Há tempo para encher os álbuns de família e comparar o nariz daquele trisavô que batia na mulher porque naquela época era aceitável. Levem todo o tempo e peçam todo o espaço que precisarem para vocês. Por uma vez, são o centro do universo, o Sol gira à vossa volta e assim o merecem. É o melhor conselho que vos posso dar com base nas minhas previsões e experiências. O segundo é pedirem subsídios ao governo.
O meu regresso foi, portanto, algo atribulado. Mas não dei a importância que seria de esperar. O mínimo nervosismo que me causou foi tudo o que a minha mãe teve de aturar. E, mais uma vez, tudo isto só porque eu queria algo para o nascimento da minha família: que não me chateassem o juízo.
A grande punchline disto tudo é saber que muitos destes familiares estão neste momento a ler precisamente esta frase. E foi por isso que escrevi este texto com tanto carinho e amor que tinha no coração. Porque fiquei calado na altura por desprezo, por estar focado na minha mulher e na minha filha. E porque agora vejo a relevância de partilhar este episódio com o mundo, primeiro porque quero ajudar os novos pais a dizer que não estão sozinhos, eu entendo as parvoíces que têm de aturar; segundo, porque quero agradecer publicamente à minha mãe que nos defendeu e não merecia passar por tanta estupidez; e, em terceiro, porque quero ajudar o mercado nacional. Sei que nenhuma loja de roupa patrocina o blog mas ficaram a ganhar com este texto pois houve uma subida considerável nas vendas de casacos com carapuças.
Eu tinha duas missões com o meu regresso da Dinamarca: assegurar o nascimento da minha filha e conseguir trabalho. As regras já estavam claras, agora só faltava o outro objectivo.
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