Quando partimos para a Dinamarca, os tempos estavam sombrios para nós, com todas as despedidas e o que estaríamos a deixar para trás. A última noite foi tão estranha e a última manhã foi tão rápida. A memória mais forte que tenho, além da minha mãe a chorar enquanto me agarrava a saber que teria mais um filho longe dela, foi ver a minha avó à entrada da nossa casa a despedir-se. Não me lembro de a ver chorar, mas lembro-me de a ver sentir-se sozinha. E foi a última memória que levei dela comigo, à porta, sozinha, perfeitamente enquadrada à entrada como se fosse uma pintura. O meu pensamento foi sempre: será que a voltarei a ver?
A viagem em si foi fantástica. Foi o primeiro vôo da minha mulher e sentíamos aquela sensação de aventura e de conquista. Conseguimos, no final de tudo e de tanto. Estávamos, pela primeira vez, sobre as nuvens. Sentíamos medo, confiança, dúvidas e orgulho. Fizemos juntos, por iniciativa própria, e fomos contra tudo o que nos apresentou como obstáculo. Em parte, talvez tenha sido o nosso grande erro. Fizemos bem em ter ido nas nossas condições?
Chegámos a Copenhaga e depressa ficámos encantados. Não com os preços, mas com as casas de banho. A casa de banho do homem tinha fraldário. Um primeiro sinal para mim vindo do nosso grande Senhor, George Carlin, e a primeira noção do desenvolvido que era aquele país a comparar com Portugal. Como eu digo sempre na cama: são as pequenas coisas.
E assim aterramos em Aalborg, prontos para a conquista. Apanhámos o primeiro autocarro depois de eu perguntar se parava em Jomfru Anne Gade (apontei para um papel com o nome escrito, não sabia dizer yomfru eine gueile), e chegámos ao nosso destino. Uma rua de strip. Bem, não a rua em si mas os bares à volta tinham várias meninas e senhoras ilustradas com uma quantidade de roupa interessante para o clima em que viviam. Entrámos no segundo autocarro para o Danhostel e após várias perguntas ao motorista que não nos percebia muito bem, reparámos que ele passou a paragem terminal e acelera para um percurso estranho. Será que ele entendeu que eu queria uma experiência do Eli Roth?
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| Não ajudava ficar no meio do nada |
Mas não. Bem, no fundo não. Ele levou-nos para a porta do Danhostel, e voltou para o seu terminal. Foi a primeira vez que andei num Taxi-Autocarro, e viria a andar mais duas ou três vezes. No hostel, onde pensámos que íamos ser separados por sermos do sexo oposto, puseram-nos nas cabines de casal, onde só era permitido amor. A nossa sorte foi não só ficarmos na companhia da melhor malta das cabines como tínhamos a vantagem de estarmos num espaço asseado, ao contrário das restantes cabines, como o pobre do meu amigo Engenheiro que vivia com malta que fritava chouriças e deixava a gordura no chão. Estou a escrever a sério.
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| Depressa o contentor verde pareceu convidativo |
Mas antes desse horror, o Engenheiro apresenta-nos a mais portugueses, como Pedro, o Cientista de Aveiro que foi amável em nos deixar ficar na casa dele, dividindo com o Engenheiro, a Elisa, a Arquitecta, que foi a primeira pessoa a nos contar como sobreviver naquele país tropical, e uma doninha sem nome que andava connosco. Outros portugueses foram aparecendo dias depois e, quando nos pusemos a fazer contas, éramos uma comunidade. No fundo, éramos as minorias do hostel.
Na nossa cabine, vivemos com os Romenos e com o Matej, (chamávamos Matthew não sei bem porquê), que esteve alguns dias com a namorada, de quem não me recordo do nome mas era fã do Batman e no final da vida é só o que importa. Mais tarde, juntou-se a Mar, a Nossa Irmã, por uns tempos, e assim se formou o núcleo de amigos.
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| Onde eu e a minha esposa passámos os dias a sonhar que viríamos a conseguir algo melhor. E que alguém havia de matar as vespas na nossa janela. |
Na primeira noite em Aalborg, a minha mulher foi-se deitar de exaustão e eu fui caminhar com o Engenheiro mais um grupo extenso de imigrantes. Fomos para um porto ali perto e ficámos horas ao frio da noite sobre a lua a contar quem éramos e o porquê de lá estarmos. O principal motivo, como bem adivinham, era procurar por algo melhor. E assim estava formado um circulo de jovens europeus perdidos, fora de casa para tentarem um melhor futuro do que prevêem. Era o clube da Ceia.
De regresso ao hostel, ainda fiquei sentado mais uma hora com o Engenheiro a bebermos cerveja, como só se consegue com os melhores engenheiros, e falar do que esperávamos a partir dali. Foi o momento em que realmente me senti no país pois fiquei a olhar para um céu diferente e a aperceber-me do quão realmente longínquo eu estava dos meus pais; a forma natural que temos de nos guiar, como uma bússola da vida. Era ali que eu estava agora.
Conseguimos.
- - -
No último mês em Aalborg, eu aproveitei a minha estadia de forma diferente. Já tinha o bilhete de vôo e já não tinha contas com que me preocupar. Seria de esperar que eu gozasse o país, mas fiz o contrário. Mantive-me a estudar até ao final. Depois do trabalho de grupo, eu ficava até à noite na universidade, não a trabalhar mas a fazer o que faria em casa. Era o único espaço em que ainda sentia ser meu. Toda a cidade e a própria casa perdeu a importância. Falei anteriormente deste assunto, do que mudou sem ter a minha mulher, mas ainda tinha a esperança e luta pelo seu regresso. Agora, sabia que estava tudo acabado e só via a casa como um abrigo.
Certo dia, enquanto eu preparava as arrumações para exportar para Portugal através do Serviço Nunca Mais me Atrevo, alguém toca à campainha. "É agora!" pensei eu, "a NOS encontrou-me!". Abro a porta com o martelo do Ikea prestes a recriar a cena do corredor do Oldboy quando, a ser visto, era só a Sandra, a Cientista. Convidou-me para um passeio.
Fiquei a conhecer o campo atrás da nossa casa, que até ali nunca tinha passado por ele, e fez-me pensar no quão perfeito seria ver a minha filha correr por ali. Quem sabe, venha a correr. Convidou-me para ir beber café em casa dela, sendo que a cozinha era partilhada por todo o andar do prédio. Por esta altura, estava mais do que habituado a beber café com estranhos, a ponto de o deixarem de ser. A Sandra fez-me algumas destas, de aparecer do nada, precisamente quando eu estivesse com rolos no cabelo a envernizar as unhas com duas rodelas de pepino nos olhos e a dizer "anda daí, vamos para o quentinho!"
Não ter de me preocupar mais com as contas fez com que eu pudesse comer melhor. E por comer melhor quero dizer que me enchi de asas de frango picantes do Rema1000. Não são picantes e talvez não seja frango, mas viciei-me. A comida também teve um peso na depressão, ter de comer comida com sabor a cartão e ter de fazer durar o mais que pudesse, não ajudava o dia a dia. O que me safou foi ter já comprado pimenta antes de estar mal, dando para mascarar alguns segundos. Talvez por isso me tivesse viciado tanto nas asas de frango. Nas palavras dos GNR: 'As asas são para devorar'
Outra forma de arranjar comida era ir aos contentores. Ao contrário de Portugal, os empregados (como quem diz, as empresas) não se incomodavam com as pessoas irem buscar carne ao lixo. O L conta que quando teve um supermercado perto de casa, engordou por ir tanto ao lixo. Chegava a encontrar entrecosto já marinado para ir ao forno tal como estava, o que era caríssimo mas ali estava. Eu ponderei imensas vezes, mas nunca cheguei a ir. Talvez por já não me sentir no pico da minha dificuldade, mas sentia-me nervoso com o saque à missão impossível. Nada contra o Brian De Palma, mas receio os efeitos secundários de representar o Tom Cruise. Felizmente, a minha roommate era mais inteligente e chegou a ir buscar comida.
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| Uma pessoa tenta não seguir os estereótipos mas depois chamam 'Viking' ao pão... |
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| Nunca comi batatas tão boas. A validade acabava em 4 meses, possivelmente foram para o lixo por serem tão caras que ninguém as comprava |
É difícil de falar em comida sem falar sobre Portugal. Tive saudades da nossa comida? Bem, eu tinha o nosso azeite e o "nosso" café, o que são os nossos pertences que mais aprecio. Fora isso, os pratos em si são sempre possíveis de replicar no estrangeiro com a excepção de maravilhas como Bacalhau à Brás pois ninguém compreende o potencial das batatas palha. O que eu depressa senti saudades foi, sim, os cafés (estabelecimentos) por todo o lado. O simples acto de ir beber um café ou um Ucal fresquinho acompanhado por um pastel de nata, ou como eu prefiro, um bom bocado (cruelmente posto de parte face ao pastel de nata), era talvez o que me deixava com maior saudade e inveja dos portugueses que foram visitar o país no Natal. Estar com a família também é interessante, mas a saudade maior era de beber uma bica, o resto vem depois!
E é com este pensamento que vos falo do jantar organizado pela Ana, a escritora. A Ana juntou todos os portugueses que conseguiu em casa dela para um jantar à português: Bifes de frango com cogumelos e arroz! Era para ser uma bacalhoada mas eu não tinha postas que chegassem no congelador, por isso recriámos o segundo melhor prato.
Estávamos todos sentados à mesa como uma grande família que não se via há muito tempo, com primos que brincámos uma vez num casamento e agora é suposto sermos os melhores amigos independentemente dos pontos de vista serem diferentes, particularmente no que toca ao racismo. Fomos obrigados a apresentar, individualmente, quem éramos, o que estávamos ali a fazer (jantar, presumo) e o que esperávamos do nosso futuro em Aalborg. Nós somos os protagonistas do filme que é a nossa vida e eu, tal como um bom filme, era o último da mesa a apresentar-me. Havia bastantes portugueses entusiasmados por estarem ali, com imensas expectativas, fogosos por serem refugiados do PSD, até irem perdendo o sorriso com o desanimo do que muitos contavam como experiência. Até chegar a minha vez, em que anúncio a rir-me que me vou embora dentro de duas semanas. Dizia-o com tristeza profunda, mas não pude ignorar o hilariante que foi, no meio de tanta gente feliz por ter conseguido chegar ali, eu terminar as apresentações com o maior exemplo do que pode correr mal. Alguns demonstravam inícios de regressarem ou procurarem [novamente] algo diferente; porém, eu já tinha o bilhete.
O jantar foi bastante divertido, incluindo jogos para toda a família como estampar sticky notes na testa e tentar adivinhar se somos o Fernando Mendes. Foi a última vez que vi alguns dos meus amigos que por lá fiz, como o Pedro e a Elisa, o Cientista de Aveiro e a Arquitecta, respectivamente. Foi bom, porém, ter sido um jantar à português como última memória viva. Da Ana, a Escritora, despedi-me três vezes, porque o português é assim. Não deixo de referenciar a Mafalda, a Jornalista (tive de ir ao Facebook Mafalda, avisa-me antes de eu publicar se estiver enganado). Conheci-a no jantar mas partilhávamos os mesmos amigos durante o mesmo tempo de estadia. Ficámos a conversar lá fora, sendo um momento que não me esqueci. A conversa, ou melhor, as palavras não foram nada fora do comum mas notou-se que estávamos interessados em falar um com o outro e, de alguma forma, tentar resumir os meses de potencial amizade num pequeno excerto antes de me ir embora. Dizer-me que gostava de me ter conhecido e à minha mulher mais cedo, foi uma belíssima forma de despedida, acompanhada pela tristeza de saber que também a minha esposa iria gostar de estar presente no jantar . Não tivesse sido a doninha do hostel, que nem leva uma letra maiúscula, e podíamos ter sido amigos mais cedo.
Caminhei ao longo da noite, como sempre, até casa. Celebrei o que era ser amigo, companheiro e português, tudo numa noite com um simples jantar. Muitos daqueles amigos não voltei a ver, outros não voltei a meter conversa. Mas fica para o destino escolher quando iremos cruzar de novo o caminho. Se o destino demorar muito ou fizer uma birrinha mimada, meto conversa no Facebook, para acelerar o processo.
Este sentimento de camaradagem era algo que felizmente eu trazia de Portugal, pois de tudo o que eu me possa queixar, amigos nunca foi um problema para mim. Considero que fiz amigos para a vida em Aalborg, mas os nativos não são muito de ir sair e ir beber um café ali para passearmos no outro sítio. Porquê a conversa com um café quando podemos falar no Facebook? Sair de casa para convívio realiza-se nos bares ou durante o verão em que as casas ficam vazias. Não que dê para os censurar tendo em conta o clima, mas nem uma selfie para o Instagram para eu impressionar os meus pais?
Felizmente, eu tinha a Mar, a irmã. Eu e a Mar tínhamos muito em comum, nomeadamente a península onde nascemos e já termos viajado, imaginem só, a dois países idênticos: Dinamarca e Espanha, sendo que eu fui uma vez com o meu tio abastecer a Badajoz, a capital.
Combinei com a Mar precisamente um café como manda a tradição dos Ibéricos. Infelizmente ela não me deixou pagar e até hoje lhe devo um café de 10 kroner e meio bolo. Embora as conversas que tivemos no hostel, onde deu para perceber a sua simpatia, foi neste passeio que deu para realmente nos conhecermos. Falámos sobre a nossa perspectiva sobre Aalborg e do que conhecemos dos Dinamarqueses, generalizando. Ainda que tínhamos um ponto de vista muito positivo, concluímos o que nos fazia falta dos nossos países, particularmente este contacto humano de simplesmente irmos beber um café para falar e conhecermos mais um pouco dos nossos amigos, mesmo que seja só para podermos dizer "olha, temos de repetir um dia destes", e com "estes" queremos dizer dentro de dois anos.
Falámos sobre esta frieza na população precisamente no espaço mais frio, junto ao rio. A Mar com saudades do seu quente mar mediterrâneo e eu com saudades da mulher dos bolinhos de Carcavelos. Mas também concluímos em como era bom haver esta possibilidade da falta de contacto, de podermos estar realmente sozinhos com os nossos pensamentos sem nos preocupar-mo-nos em sermos abordados. Como indiquei por estes capítulos, caminhei tanto quanto pude e guardei memória da maior parte dos trajectos. Nada me faz esquecer quando fui pela autoestrada a ouvir Bob Dylan e a comer beef jerky, sentido-me num trailer de um filme americano com boa música e depois vai-se a ver e é uma decepção de 2 horas com um elenco desperdiçado.
Quando a mistura de frio com vento tornou-se uma parvoíce, fomos para perto da igreja à frente da Student house, em Gammeltorv. Contei-lhe a história de como conheci a minha mulher, quem nós éramos e o porquê deste sonho ter sido tão importante e uma perda tão grande para nós. A Mar comentou que sempre admirou o nosso entusiasmo por estarmos ali e, de facto, não conheci ninguém que partilhasse da mesma energia. Éramos os únicos que afirmávamos que queríamos estar ali para viver, impressionando os próprios dinamarqueses com a resposta.
Este pequeno passeio com a Mar que durou até escurecer, foi dos melhores pedaços que tive em Aalborg. De alguma maneira soube que estava em casa, estando simplesmente sentado num sítio a falar com uma amiga sobre seja o que for. Talvez tivesse sido importante fazê-lo mais cedo durante os meus piores meses de depressão, talvez tenha acontecido no momento certo. Foi uma tarde memorável, tal como o jantar, e também à semelhança, foi um momento de pura simplicidade. Despedi-me da Mar com um abraço em Nytorv e com a promessa de que nos reencontraríamos um dia, já com uma pequena morcega no meu colo.
Ainda passei várias tardes e cafés com a Sandra, a Cientista, que me ajudou durante todo o processo. Com ela, fui também almoçar a casa da Cátia, a cientista, onde fizemos uma pizza caseira que podia ter corrido melhor de aspecto mas o sabor estava lá. Ter vários amigos a falarem é um dos maiores flagelos no que toca à confecção de uma pizza prestes a queimar. Surge mais uma promessa com a Cátia em como nos iremos reencontrar, provavelmente em Portugal quando formos ao McDonald's do Chiado com a Sandra, a Cientista e com a Ana, a Escritora.
Na última semana, aguardei pela chegada do Engenheiro para a nossa despedida, pelo menos naquele país. Ficámos sentados na minha última mobília, o estrado partido de uma cama de criança (um nome digno da minha biografia) enquanto bebemos uma Carlsberg Elephant, conhecida por conter mais álcool do que cerveja; certamente faria um sucesso com os miúdos no Bairro Alto. A despedida com o Engenheiro não custou tanto pois seria mais fácil de me cruzar com ele, já que em Portugal moramos a 15 minutos de distância, se os semáforos estiverem do nosso lado. Ainda assim, era a despedida de um amigo de infância, e não podia ir embora sem uma última conversa com álcool. Foi a última conversa, mas o penúltimo encontro já que ele viria a ajudar-me com as bagagens até ao aeroporto.
Este pequeno passeio com a Mar que durou até escurecer, foi dos melhores pedaços que tive em Aalborg. De alguma maneira soube que estava em casa, estando simplesmente sentado num sítio a falar com uma amiga sobre seja o que for. Talvez tivesse sido importante fazê-lo mais cedo durante os meus piores meses de depressão, talvez tenha acontecido no momento certo. Foi uma tarde memorável, tal como o jantar, e também à semelhança, foi um momento de pura simplicidade. Despedi-me da Mar com um abraço em Nytorv e com a promessa de que nos reencontraríamos um dia, já com uma pequena morcega no meu colo.
Ainda passei várias tardes e cafés com a Sandra, a Cientista, que me ajudou durante todo o processo. Com ela, fui também almoçar a casa da Cátia, a cientista, onde fizemos uma pizza caseira que podia ter corrido melhor de aspecto mas o sabor estava lá. Ter vários amigos a falarem é um dos maiores flagelos no que toca à confecção de uma pizza prestes a queimar. Surge mais uma promessa com a Cátia em como nos iremos reencontrar, provavelmente em Portugal quando formos ao McDonald's do Chiado com a Sandra, a Cientista e com a Ana, a Escritora.
Na última semana, aguardei pela chegada do Engenheiro para a nossa despedida, pelo menos naquele país. Ficámos sentados na minha última mobília, o estrado partido de uma cama de criança (um nome digno da minha biografia) enquanto bebemos uma Carlsberg Elephant, conhecida por conter mais álcool do que cerveja; certamente faria um sucesso com os miúdos no Bairro Alto. A despedida com o Engenheiro não custou tanto pois seria mais fácil de me cruzar com ele, já que em Portugal moramos a 15 minutos de distância, se os semáforos estiverem do nosso lado. Ainda assim, era a despedida de um amigo de infância, e não podia ir embora sem uma última conversa com álcool. Foi a última conversa, mas o penúltimo encontro já que ele viria a ajudar-me com as bagagens até ao aeroporto.
No penúltimo dia, fui cedo até à Aalborg Universitet para me despedir do grupo. Entrei na sala e ali os encontrei tal como os conheci. Todos os 2 membros de um grupo de 8. Entreguei o que tinha para oferecer. Nada simbólico, só objectos práticos como fichas triplas e óleo para a bicicleta, extraordinariamente caro por sinal. Ainda ofereci um pacote de bolachas, a verdadeira moeda da universidade, e tivemos a última conversa em grupo. Tinha também uma Tuborg clássica para o Anders mas ele não apareceu por estar doente. Acho que não quis chorar pela minha despedida, sejamos sinceros. Despedi-me do L e do Kasper com um 'até um dia', bem profissional mas sentido. Dei a última volta pelos corredores da universidade para anunciar oficialmente ao secretariado de que iria desistir. Uma vez mais, as lágrimas traíram a minha confiança e assim me desmanchei à frente da secretária. Era o ponto de final da minha aventura e a última vez que viria a estudar.
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| Decidi colocar-lhes uma última questão antes de ir embora |
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| A minha casa de banho favorita, onde fui muito feliz |
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| A última foto da minha vista diária |
O restante dia foi passado a caminhar pela cidade, tanto quanto pude e por caminhos que ainda não teria conhecido.
Comecei por ir ao DanHostel, para me despedir do sítio onde tudo começou. Odiei muito este espaço, mas as memórias são mais do que os dias que por lá passei. Creio que 90% diz o mesmo, que terá sido uma experiência horrível mas que valeu pelas pessoas que conheceram que de outra forma não seria possível. Outros 10% disseram que gostaram da experiência mas sobre estes eu debato-me sobre duas possíveis explicações: terá sido por ser a primeira vez que largam o ninho dos pais em busca da juventude eterna ou terá sido por terem esmagado o crânio num bloco de betão constantemente enquanto diziam "aposto que não consegues fazer isto, a Sara é minha!". Há ainda, possivelmente, dois espécimes que se enquadrariam nas duas teorias, como o russo que se cortou num dedo e foi lavar o sangue no lavatório ao pé da nossa comida a ser preparada. Não que houvesse risco de infectar a nossa carne, apenas realçou a importância de termos comprado o nosso material de limpeza já que a esponja da louça do hostel foi absorvendo o sangue que conseguiu. Não houve nenhuma situação de urgência hospitalar graças a ninguém lavar a louça. O outro espécime era uma doninha.
Comecei por ir ao DanHostel, para me despedir do sítio onde tudo começou. Odiei muito este espaço, mas as memórias são mais do que os dias que por lá passei. Creio que 90% diz o mesmo, que terá sido uma experiência horrível mas que valeu pelas pessoas que conheceram que de outra forma não seria possível. Outros 10% disseram que gostaram da experiência mas sobre estes eu debato-me sobre duas possíveis explicações: terá sido por ser a primeira vez que largam o ninho dos pais em busca da juventude eterna ou terá sido por terem esmagado o crânio num bloco de betão constantemente enquanto diziam "aposto que não consegues fazer isto, a Sara é minha!". Há ainda, possivelmente, dois espécimes que se enquadrariam nas duas teorias, como o russo que se cortou num dedo e foi lavar o sangue no lavatório ao pé da nossa comida a ser preparada. Não que houvesse risco de infectar a nossa carne, apenas realçou a importância de termos comprado o nosso material de limpeza já que a esponja da louça do hostel foi absorvendo o sangue que conseguiu. Não houve nenhuma situação de urgência hospitalar graças a ninguém lavar a louça. O outro espécime era uma doninha.
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| O rio para onde os corpos eram atirados |
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| A nossa cabine, onde fomos muito...A nossa cabine. |
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| A cabine do Engenheiro, onde passou a ser vegan |
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| A porta azul é a entrada para a cozinha. Mas não se cozinha lá. Sobrevive-se. |
Por esta altura já teria um novo dono. Isto porque o povo escandinavo é fantástico, mas há fuinhas em todos os paraísos. O antigo dono do DanHostel (doravante apelidado de O Velho) aproveitou-se do tsunami de estudantes internacionais. Ele obrigava a pagar uma mensalidade e que saísse antes, não reavia o dinheiro. O truque, como muito bem descobriu o Engenheiro, era apanhar na recepção os filhos ou a esposa pois retornavam o dinheiro com todo o gosto, apenas seria necessário avisar com um dia de antecedência. Excepto eu que continuei na cabana por mais três noites sem pagar. Ainda tivemos a sorte pois só sofremos com as condições da casa de banho, com a net gerada por um hamster asmático de muletas e com o preço absolutamente ridículo para lavar e secar a roupa. Era preciso usar três a cinco vezes a máquina de secar. Eu sei que só pagámos por um turno de secagem, mas defendo que não paguei só pelo turno, também paguei pela parte crucial de secagem. Mais do que turno, era uma oportunidade. Uma chance.
Mas, conforme indico, tivemos sorte. Os mais recentes hóspedes ficaram alojados em contentores sem janelas, vivendo de porta aberta. Deduzo que a mudança de gerência tenha ocorrido após as queixas que fizemos à UCN, a universidade que subsidiava o hostel com rios de dinheiro, que ficaram chocados com o que reportámos.
O Velho também tinha a distinta qualidade de ser o único dinamarquês que vi de chinelos de praia. Eu tentei o melhor que pude em avisar os futuros hóspedes.
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| Por uma vida que tenha salvo, já valeu a pena |
Segui do Hostel a caminho de ruas que nunca tive interesse ou razão por lá passar mas que agora não as queria deixar. Enquanto tentava absorver a cidade, a minha mãe falava comigo pelo telemóvel e solicitava fotos de prédios, igrejas e flores. Enviei as fotos dos ramos mais bonitos que encontrei.
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| As famosas folhagens de Aalborg |
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| Uma igreja onde se pratica religião |
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| Uma igreja onde se pratica religião |
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| Estádio do clube de Aalborg, onde se pratica religião |
A última paragem da cidade que eu não podia deixar era o jardim dos músicos.
Uma espécie de cemitério para mim, em que ficava sozinho a contemplar as vidas de quem por lá passou, mas que na verdade é um espaço que simboliza a vida. Os artistas, maioritariamente músicos, que dessem espectáculos no pavilhão ao lado tinham que plantar um uma árvore no jardim, onde é colocado uma coluna que com o pressionar de um botão toca um excerto de três músicas.
Eu referi artistas e não simplesmente músicos por também haver uma árvore do John Cleese com músicas dos Monty Python. De repente, estava num espaço onde já esteve John Cleese, Jehtro Tull, Bob Dylan, B.B.King e, claro, Beyoncé. No fundo é como ir ao Sumol Summerfest mas com muito menos sexo dentro de tendas.
É uma ideia genial que seria óptimo em aplicar nos cemitérios. Imaginem que podiam escolher 3 músicas que vos representassem para toda a eternidade ou até os vossos filhos deixarem de pagar as cotas e as vossas ossadas irem para fabrico de gomas com açúcar ácido. Eu escolheria o Fantasminha Brincalhão, qualquer uma dos Fúria do Açúcar.
Uma espécie de cemitério para mim, em que ficava sozinho a contemplar as vidas de quem por lá passou, mas que na verdade é um espaço que simboliza a vida. Os artistas, maioritariamente músicos, que dessem espectáculos no pavilhão ao lado tinham que plantar um uma árvore no jardim, onde é colocado uma coluna que com o pressionar de um botão toca um excerto de três músicas.
Eu referi artistas e não simplesmente músicos por também haver uma árvore do John Cleese com músicas dos Monty Python. De repente, estava num espaço onde já esteve John Cleese, Jehtro Tull, Bob Dylan, B.B.King e, claro, Beyoncé. No fundo é como ir ao Sumol Summerfest mas com muito menos sexo dentro de tendas.
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| Incluindo a banda sonora do Game of Thrones |
É uma ideia genial que seria óptimo em aplicar nos cemitérios. Imaginem que podiam escolher 3 músicas que vos representassem para toda a eternidade ou até os vossos filhos deixarem de pagar as cotas e as vossas ossadas irem para fabrico de gomas com açúcar ácido. Eu escolheria o Fantasminha Brincalhão, qualquer uma dos Fúria do Açúcar.
Finalizei a minha última estadia percorrendo uns 20 Km até à casa dos Romenos, com a promessa de um fabuloso Sloppy Joe à Emigrante Romeno. É impossível descrever o sabor por palavras, por isso vou descrever usando uma equação: x+2=3(y*3+7)
Foram dos primeiros que conheci e dos últimos a despedir-me. Ficou mais um encontro marcado com o destino no que virá a ser uma mítica junção do clube do pequeno-almoço. Houve ainda o pedido de eu mostrar as fotos da minha filha para verem se as minhas gónadas eram capazes de germinar um ser lindo. Também eu precisava de saber.
Restava-me agora regressar a casa pela última vez. Fui o mais lento que pude e escutei todas as músicas que me marcaram na Dinamarca. Já as ouvia em Portugal, mas ali senti-as como nunca. Sabia que iria certamente recordar-me do último dia para o resto da minha vida, pelo que assegurei-me que iria escutar músicas que me fizessem sentido com o que senti. A junção de despedida e tristeza com a vontade de ter a minha filha ao colo fez com que eu oficializasse a música daquela noite como sendo a Take us back, de Alela Diane. E fiquei assim com a memória em que comecei a ouvir a música, numa noite incrivelmente escura, na curva em que a minha mulher passava de bicicleta quando vinha da universidade para casa.
Sentei-me num banco de jardim perto de casa para apreciar o ar um última vez. Eu planeei continuar a respirar até entrar no avião, mas quis sentir a respiração fria e contemplar o silêncio e a última escuridão da Dinamarca, sabendo que viria certamente a ter saudades.
E assim, caminhei uma última vez até casa.
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| Especialmente do REMA1000 e das suas chicken wings |
E assim, caminhei uma última vez até casa.
Tinha o desafio de me ver livre de tudo e arrumar tanto quanto pudesse para trazer comigo. A cama foi o objecto final a ver-me livre e com isso decidi deitar-me para aproveitar 2 horas de sono, acordando às 4h para arrumar tudo estar pronto no aeroporto pelas 10h. Vários objectos como o candeeiro e cafeteira iriam para o lixo e o colchão sendo a de espuma barata, levou-me uma hora a ser cortado com uma faca de porcelana para ir também ele aos pedaços para o lixo. Mas tinha que me livrar da armação da cama, já que a faca não cortava madeira e os meus dentes estavam fossilizados pelo calcário da água.
A minha ideia era despejar durante a noite todo o entulho num contentor das obras do restaurante ao lado da minha casa, o que certamente era melhor do que deixar no jardim ao ar livre. Mas nisto, apercebi-me de um contentor aberto ao lado da casota do Hans Zimmer, o que fez com que me livrasse de um grande peso nas costas, literalmente. Fui atirando dinhei-- quero dizer, objectos como panelas, pratos, talheres, caixas e um piaçaba para dentro do contentor. Um misto de tristeza com alívio, o que acaba também por ser uma boa definição para um piaçaba.
As bicicletas, minha e da minha esposa, foram o meu maior drama. Tentei com todas as forças arranjar coragem para as vender, mas não consegui. A minha não estava em grande estado de qualquer maneira, mas a bicicleta da minha mulher foi o objecto que mais me custou desfazer. As memórias de ela a comprar, de darmos mais um passo na nossa felicidade e de todos os passeios que demos juntos... não conseguia simplesmente entregar isso a alguém. Por isso abandonei as duas, acorrentadas uma à outra, como a nossa pegada neste país e em homenagem ao que vivemos sempre juntos.
Vi-me livre do lixo todo e efectuei toda a limpeza da casa. Olhei uma última vez para as paredes, lembrei-me da emoção de finalmente conseguirmos a nossa casa e ser o início de algo novo, que não foi.
E fechei a porta.
As bicicletas, minha e da minha esposa, foram o meu maior drama. Tentei com todas as forças arranjar coragem para as vender, mas não consegui. A minha não estava em grande estado de qualquer maneira, mas a bicicleta da minha mulher foi o objecto que mais me custou desfazer. As memórias de ela a comprar, de darmos mais um passo na nossa felicidade e de todos os passeios que demos juntos... não conseguia simplesmente entregar isso a alguém. Por isso abandonei as duas, acorrentadas uma à outra, como a nossa pegada neste país e em homenagem ao que vivemos sempre juntos.
Vi-me livre do lixo todo e efectuei toda a limpeza da casa. Olhei uma última vez para as paredes, lembrei-me da emoção de finalmente conseguirmos a nossa casa e ser o início de algo novo, que não foi.
E fechei a porta.
Lá fora tinha o Engenheiro à minha espera para me acompanhar até ao aeroporto. Fui ter com o Hans Zimmer entregar a chave e despedir-me. Foi a segunda vez que ele me viu tão feliz, o que não se enquadrava tão bem com o quão miserável eu fui nos últimos meses, especialmente quando lhe disse a chorar que a minha mulher não ia voltar. Normalmente as pessoas associam a minha mulher ter-me deixado sozinho no país com o excesso de material do Batman que tinha em casa e que as nossas dificuldades eram apenas uma desculpa. Mas o Hans Zimmer tinha um poster do Batman no escritório igual ao que eu tinha na sala, por isso ou ele compreendia-me ou viu que o segredo era não exagerar com o Batman e ter apenas que baste em quantidade material e bom senso, como o número de colheres de açúcar num pudim. Mas não devia ser a última, acho que ele simplesmente compreendia-me sobre a necessidade de espalhar a fé.
A razão da minha felicidade era querer desaparecer dali por ter deixado o colchão da Annie Hall à porta de casa. Bem, na verdade foi ela que deixou. Eu tentei, com a ajuda do Engenheiro, levar o colchão para o contentor mas fomos apanhados pelos homens das obras que nos avisaram para não pormos o colchão no contentor e foram nos vigiando à medida que guardávamos de volta. Por isso saí a correr antes que o Hans Zimmer inspeccionasse e fizesse queixas à minha mãe.
Apanhámos o autocarro e tive a memória de quando viemos do aeroporto pela primeira vez onde tudo nos parecia novo e a viagem fosse como andar de expresso até outra cidade mais a norte. Uma viagem de expresso de 15 minutos. Agora, via o percurso ao contrário, reconhecendo todas as ruas.
No aeroporto fiz o check-in e despedi-me do Engenheiro com um abraço de irmão. Não foi uma longa despedida pois em Portugal vivemos a 10 minutos um do outro, facilmente nós reencontraremos para uma imperial.
Passei os seguranças e recebi uma mensagem da Vueling a informar que o meu vôo tinha sido adiado por mais umas 4 horas. Decidi ignorar a mensagem e fui apanhar o avião da minha hora na mesma. Foi das mensagens mais incompreensíveis, ao lado da NOS que me enviou uma SMS a indicar "tenha um dia de caça" mas esqueceram-se da cedilha.
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| Guardei as provas |
Entrei no avião e voei de Aalborg até Barcelona. Agora, sim, marcou-se o final do nosso sonho. Mas não sem uma última foto do céu que cobiçámos.
Foram 3 horas de viagem onde aproveitei para ver o The Martian. Acabei por adormecer, não sei se pelo cansaço ou se pelo tédio da equipa de salvamento dos Morangos com Açúcar.
Em Barcelona, após uma viagem tranquila, desligo de vez o número Dinamarquês da Telia e abraço a minha querida Movistar. E foi aqui que me apercebi de um último grave problema. O meu plano, amigos, era ficar no McDonald's até o vôo para Lisboa com o computador ligado à corrente e a consumir tanto filmes como saladas. Mas cometi a parvoíce de não pedir para que a minha mala do porão fosse entregue no destino final. Quer isto dizer, pois então, que tive de ir levantar a mala e fazer um novo check-in cá fora. Acontece que a Vueling só regressaria às 6h do dia seguinte. Por não poder atravessar os seguranças, tive que ficar na entrada do aeroporto durante 12 horas com as malas, sem uma ficha para o computador ou telemóvel. Ainda procurei pela Mar mas nenhuma das espanholas era ela. Nunca tive tanta dificuldade em me manter acordado numa franca mistura de sono e absoluto tédio. O wi-fi tinha a velocidade de uma ligação dial-up e a força do nosso PIB. Acabei por desligar o telemóvel para garantir que teria bateria para dizer "cheguei, onde estão? Eu estou ao pé da tabacaria. Olha amanhã o Filipe sempre vem à tarde ou vamos ter com ele de manhã ao Amoreiras?". Os meus olhos tinham bigornas nas pestanas e o que me mantinha acordado era o dinheiro todo que estava a gastar nas máquinas de venda automática. Num ato em que me fez duvidar das minhas crenças, pedi um pacote de amêndoas e caiu outro pelo preço de um, como forma de o Deus católico dizer "ah, coitado do rapaz, este é por minha conta que eu ópois pago ao senhor". O sono não era ajudado por ver toda a gente à volta a dormir no chão, uns em círculo, outros isolados, outros em pé a guardar carteiras e telemóveis de quem dormia para que não perdessem nada. Eu mantive-me acordado até a Vueling chegar mas sinto que perdi a oportunidade de poder contar que fui a Barcelona e dormi com tantos homens.
Já no autocarro para sermos guiados até ao avião, tenho a minha última aventura. Ficamos fechados durante 15 ou 20 minutos a aguardar que as portas abrissem para subirmos a bordo. Já mal se respirava o ar imigrante quando as portas se abriram, precisamente quando começa a chover torrencialmente. Entramos fresquinhos no avião e aguardamos mais 15 minutos quando um passageiro repara que as nossas malas ficaram à chuva este tempo todo. "Ah é verdade", pensou a Vueling. O piloto pede desculpa e seguimos caminho. Cometi o erro de não pedir entrega no destino final, mas fui astuto em trazer comigo tudo o que era electrónico.
Hora e meia depois, chego a Portugal. Estava tanta gente que por momentos ponderei se não vim com o Salvador Sobral, mas recordei-me que só viria a ocorrer um ano depois.
No meio de tudo, encontro os meus pais, a minha tia, a minha avó e a minha mulher, mais redonda. Meti a mão na barriga e pensei "estou de volta filha"
Vamos para casa
Vamos para casa













































