13 February 2017

Episódio 10 | Um Feliz Aniversário | Ou: É aí, minha querida, que começaremos outra vez



Ir ao correio nunca era muito animador. Não recebia correspondência de ninguém, por isso ou era contas para pagar ou cartas do governo a dizer que eu tenho de traduzir primeiro. Certo, em Portugal também não recebia correspondência mas recebia cartas da Deco a avisar-me de produtos que eu devia evitar e a defender-me do mercado, como prezado consumidor que sou, com um tablet de fazer doer a vista se olhar por mais de 1 minuto, subscrevendo um serviço.

Em certa manhã recebo uma carta onde me salta à vista a minha data de nascimento. Isto obviamente só podia querer dizer que por eu fazer anos não teria de pagar as contas daquele mês. Até que traduzi e tratava-se de uma lista de alterações na minha casa. Iam colocar um chão novo, pintura nova e toda uma nova cozinha. Só não iam remover o excesso de calcário que já existia, isso ficaria para eu pagar. Estas obras não vieram no momento mais oportuno pois eu estava a tentar esconder a Anniehall e tudo o que eu menos precisava era ter vários homens em casa incluindo o cameo surpresa do Hans Zimmer, o meu caretaker. Felizmente, a maior parte das obras foram na cozinha, ou seja, no meu quarto, por isso havia uma chance de nos safarmos dos falcões.

Já eu prestes a chegar atrasado às aulas por ter estado a arrumar (sempre me pareceu uma palavra muito forte) a casa para eles terem a cozinha livre, reparo que a entrada estava cheia de balões. A Anniehall foi uma querida e preparou-me a surpresa naquela noite, com um cartão a dizer que não gosta de ver pessoas tristes. O único problema era os homens estarem a chegar, eu estar atrasado e agora tinha de levar os balões todos para a sala. Era um problema complexo, digamos, com muitas fases. O dia estava a começar bem, no entanto. Além da bonita surpresa, eu estava com um abcesso no lado esquerdo da gengiva. Mas o frio lá fora era tanto que quando cheguei à Aalborg Universitet o meu inchaço estava curado. O que eu poupei em Diclodent, não existia o conceito de "epá isso tá mesmo mau, mete ervilhas congeladas nisso, que eu tenho ali há meses porque eu gosto de fingir que gosto de ervilhas"; ao invés disso, os dinamarqueses diziam "epá isso tá mesmo mau, vai lá fora ver se há correio".



Na universidade, recebi a segunda melhor prenda de sempre: um pacote de bolachas com pepitas de chocolate do Aldi local. Era comum na universidade dar valor a bolachas e biscoitos, sendo a forma mais famosa de pagar a quem aceitasse fazer testes de outros grupos. Não só era levado a sério o pagamento em bolachas como era uma oferta irrecusável. Por isso, foi um gesto se enorme valor, e claro que partilhei com os colegas. Passamos o dia a trabalhar até eu ter recebido a melhor prenda de sempre.

A minha esposa pediu para ligar a câmara, algo que me custou um pouco por não estar na minha maior privacidade mas assim aceitei em ver a minha mulher, a minha avó e a minha tia a sorrirem para mim. Seria bom o suficiente, mas não acabou por aqui. A travessura era verem a minha reacção ao saber, finalmente, o sexo do bebé.

E não é que ganhei? Não é que a combinação de cromossomas foi precisamente a que eu queria? Não é que eu sabia o que estava a fazer durante a vontade de Deus antes do casamento?

Eu viria a ser pai de uma menina!

Pára de fazer com que eu acredite em ti Deus


Todas as minhas referências estavam certas: a Murph de Interstellar, a Clementine de The Walking Dead, a Ellie de The Last of Us. Valha-me Brian, eu viria a ser o Lee, o Joel e o Mcconaughey num só! Era como se a Mockingbird que eu andava a ouvir me tivesse feito um spoiler!

Estando no grupo, eu disse logo:
"Vou ter uma menina!!!"
".....what?"
"I-I mean, I'm gonna have a girl!!!"

E fizemos um brinde com as nossas tuborgs enquanto trincávamos alcaçúz a usar os nossos capacetes de Viking na nossa sala em Lego.

Este dia estava safo, nada o podia estragar. Para ajudar, fui beber um café com a Sandra, a Cientista, pois ninguém merece passar os anos sozinho excepto os que merecem. Fui contando à Sandra como estava a ser a minha experiência, as minhas dificuldades e os meus objectivos, sendo estes fragmentados por incertezas. A minha felicidade estava indecisa se podia sair de casa ou não, com receio de ser atropelada pela verdade. Mas o que era a verdade naquela altura? Neste momento uma menina esperava que eu me decidisse sobre o que fazer. Ficaria mais uns meses a tentar, arriscando ficar sem a casa e passar por dificuldades em voltar para poder passar dificuldades mas desta vez acompanhado? Eu cheguei, de facto, a ponderar viver na minha sala de grupo. Porque não? Tinha a casa de banho ao lado, tinha chuveiro, tinha fichas para aquecer a água e poupando na renda tinha sempre a hipótese de comer na cantina mais frequentemente. Relembro que nesta altura eu estava a comer 3 maçãs por dia e a ocasional sopa instantânea que, embora a embalagem explicasse que devia ser servida numa caneca, eu provei cientificamente que podia servir para uma tigela grande. Só não apresentei a tese sobre a sopa porque já tinha o meu outro trabalho de grupo. O problema maior seria mesmo o dormir desconfortavelmente mas desde Agosto que eu desconhecia esse conceito. Em parte eu não estava a levar a ideia a sério, mas não posso negar que considerei realmente a hipótese. Mas não cheguei levar o plano avante quando me avisaram que havia um segurança a patrulhar uma vez ou outra e, convenhamos, ninguém iria acreditar que eu estava aquele tempo todo a dedicar-me ao projecto, mesmo usando óculos.

Depois de bebermos o café, saímos da Studenthouse em Gammeltorv, a casa onde se podia estudar álcool e snooker. Caminhámos até casa por um caminho alternativo (para mim, a Sandra estava lá há mais tempo do que os Reis) e antes de pararmos em minha casa, continuei em frente para a acompanhar. Na Dinamarca podemos andar a correr cheios de notas que não temos pois ninguém nos rouba, mas era o meu dever levá-la a casa. Tinha sempre o bónus de apanhar mais ar fresco no meu regresso, o que se tornou num hobby por aquelas terras, eu sair para ouvir música no meio da neve. Um dia que eu releia este parágrafo, a ver se não me esqueço de sublinhar a expressão "ar fresco".

Ilustração de eu a passear com a Sandra, para vocês visualizarem


Eu ia ser pai de uma menina. Eu ia ser responsável pela formação de um ser ao qual eu teria de estar presente em etapas que eu não atravessei. Eu teria de formar uma pessoa forte num mundo injusto e preparar para defender a igualdade e lutar pelos seus direitos, bem como do próximo. Teria de lhe formar em igualdade, que não tolerasse machismo mas que não tolerasse feminismo, que não tolerasse parvoíce e simplesmente se focasse em ser um bom ser humano, seja lá o que isso queira dizer. Teria de formar alguém que não fosse uma besta, resumindo. Igualdade. Gostei dessa palavra. Encaixava bem com Dinamarca. Vê-se imensas mulheres a terem trabalho tipicamente deixado para os homens, como motoristas (penso que na Carris existem duas, ou uma que anda em várias carreiras com um disfarce diferente) e vê-se oportunidades de o homem poder ser pai, havendo fraldários nas casas de banho masculinas, imagine-se.

As obras foram avançando e eu passei das noites mais quentes de sempre pois tive de dormir ao lado de um aquecedor que forçava a massa posta nas paredes a secar até o dia seguinte. No final das obras, que ainda demoraram mais do que o esperado, fiquei com uma cozinha fantástica, ao som da música lamechas do 'Querido Mudei a Casa, deixa os Sapatos na Entrada que Isto é para Manter até vir a Tua Mãe'.









Só me deixava triste não ter a minha mulher para usufruir de algo que nunca tivemos, pois ia adorar. 

Faltava só a visita de inspecção coordenada pelo Hans Zimmer. Analisou os detalhes para ver se o balcão dava para ser riscado só de olhar e que uma das portas do armário batia na parede a ponto de deixar marca e foi andando. Mas não sem abrir a porta do quarto, tendo visto a Anniehall. Na melhor das hipóteses, achou que eu estaria a trair a minha mulher que estava no estrangeiro, esperava eu.

Acabei por receber correspondência. Por uma vez, não era nenhuma conta ou a exigirem de forma hilariante que eu pague uma licença de multimédia. Era uma prenda da minha mãe para me dar força para aguentar.



E foi por esta altura que eu já teria falado com a minha namorada e tomado a decisão. Chamei a Anniehall para se sentar comigo à mesa para que eu lhe pudesse contar a verdade.




Eu ia voltar.