Eu sentia vários relógios na Dinamarca: o relógio do bebé nascer, o relógio de arranjar trabalho, o relógio de pagar as contas, o relógio de trazer a minha mulher de volta, o relógio da Universidade,... Já em Portugal, os relógios eram diferentes. Os objectivos não mudaram muito, mas pareciam-me diferentes. Estava meramente focado em arranjar trabalho, tanto que o tempo do bebé nascer me pareceu mais lento apesar de estar mais próximo do que nunca. Faltavam poucos meses e quase que nos aproximávamos dos temíveis 7 meses mas de alguma forma eu sentia que houve um pequeno travão no tempo e eu podia respirar por um pouco que fosse.
A minha regra para arranjar trabalho sempre foi a mesma: sinto-me confortável a fazer seja o que for desde que não seja a lidar com o público. Gosto do chamado "estar na minha" e, acima de tudo, trabalhar ao meu ritmo. Não que eu demore a trabalhar, pelo contrário, sou mais rápido se for feito com um objectivo claro a ser terminado ao final do dia. Uma vez estagiei numa empresa como designer gráfico (soa melhor do que o trabalho que realmente fiz) onde eram-me entregues perto de 50 posters e flyers de manhã que eu teria de fazer até sair. O resultado era eu acabar até à hora de almoço e sair mais cedo, às vezes acabando por almoçar em casa. Não era trabalho bom, a preferência pela empresa era precisamente criar spam, mas era trabalho concluído, que era o importante para o meu Patrão que não me pagava nem a mim nem aos 20 estagiários do IEFP. Lidar com o público, no entanto, era algo que jurei nunca fazer. Detestava a ideia. Além de eu já ser bastante envergonhado, a ansiedade de pensar em interagir com alguém que espera de mim um nível de exigência que tenho de corresponder, agonia-me de nervosismo.
E foi por isso que eu achei uma brilhante ideia candidatar-me para trabalhar num hospital a atender o público.
Ainda na Dinamarca, um amigo meu, o Engenheiro Peres, falou-me que estavam a recrutar e eu aceitei candidatar-me. Na altura não ponderei se me sentiria à vontade pois, por mais tímido que fosse, a possibilidade de ter uma filha sem qualquer emprego era mais desconfortável. Enviei a minha candidatura e aguardei, tendo também enviado para mais alguns sítios como salvaguarda.
Enquanto as candidaturas estavam a marinar, era tempo de aproveitar estes últimos dias de regresso e de preparação para ver os meus velhos amigos. Um dos primeiros idosos que encontrei foi o Mestre Pipas, o Engenheiro e a Dra. Rita, a Doutora. Falámos sobre os nossos planos, desabafámos chatices que nos circulavam e, mais importante, voltei a beber café. Ganhámos ainda uma camisola de bebé da Abbey Road, por onde o Mestre passou para fazer seja o que for que os Engenheiros fazem durante as férias. Engenheirias, presumo.
E por falar em roupa, foi hora de lavar e estender a roupa da nossa filha pela primeira vez.
Se eu já achava as meias pequenas, então quando estas saem da máquina parecem dedais. Peça a peça, fomos estendendo e o resultado deixou-nos emocionados. Ver a roupa da nossa filha pendurada é uma afirmação de que algo está para existir e terá a sua presença no mundo. Já existia, claro, mas num ovo Kinder. Agora imaginávamos melhor um possível tamanho e espaço que ocuparia naquelas roupinhas, mas tínhamos de ser criativos sobre como seria a nossa filha, além de perfeita, naturalmente.
E mais importante, a quem daríamos esta roupa toda assim que deixasse de lhe servir 45 minutos depois de experimentar?
No dia seguinte, a manhã começou com um som diferente. Habitualmente, naquela residência acorda-se com sons de animais de quinta a serem castrados, ou como se diz em Portugal, vizinhas a falarem de plantas. Mas desta vez foi diferente. Houve um aglomerado de vizinhança atenta ao pormenor de haver uma roupa em escala. Maravilhadas, comentavam o tamanho dos botões, dos laços e dos cabides, imaginando como ficaria bonita naqueles conjuntos. De facto, o simples acto de estender a primeira roupa de bebé toca a todos, simbolizando que vamos ver mais um ser humano a correr de um lado para o outro e a pagar impostos.
E assim, recebi a chamada. Fui informado que seria entrevistado para o trabalho no Hospital. "Bolas!", pensei eu, como alguém que recebe uma proposta de trabalho, "agora tenho mesmo que fazer a barba!" . Apesar desse contra, era uma boa notícia e certamente viria a atrair uma maré de boas graças. A partir de aqui, só podia correr bem.
Senti, porém, que algo faltou nesta experiência de pai. Fui presente durante a gravidez desde o início, mas não presencialmente. Estive no início da descoberta e das decisões difíceis, mas falhei as três ecografias, tendo assistido em diferido e acompanhado de um sorriso virtual da minha mulher. Felizmente, a Dra. que realizou a última ecografia decidiu que poderia ser feita uma quarta, ao qual eu pude comparecer. E lá estávamos: eu, a Esposa, a Filha e a Madrinha da Filha da Esposa, prestes a ver um episódio da segunda melhor série de tv de todos os tempos. Nada consegue destronar o Zé Gato, afinal de contas.
A Dra. que realizou as ecografias é fácil de ser reconhecida por quem já esteve grávido de um bebé humano: é a melhor ecógrafa de Lisboa. Além de ser uma velhota simpática que já viu mais bebés do que muitos traficantes, tem toda a atenção e disposição ao pormenor, sabendo que, apesar de cheia de marcações, cada ecografia é um momento inesquecível para os pais. Afinal, não estamos em família para ver se temos algum nódulo de gordura no cotovelo, mas sim um pedaço de amor com membros a sorrir e a engolir líquido amniótico a mais.
É formidável estar acompanhado pela descrição da médica sobre o que estamos, de facto, a ver; sendo que até aqui só tinha visto imagens em silêncio. O momento alto foi, obviamente, escutar o coração da minha filha que já batia tão rápido como uma mulher de 60 anos a ignorar os plágios do Tony Carreira no Terreiro do Paço, mas também devo referir o momento obrigatório em que a médica pergunta ao pai se sei que órgãos estamos a ver. Habitualmente, serão os genitais para apanhar o pai desprevenido e causar algum embaraço. Confesso que me deram algumas dúvidas sobre se era efectivamente uma rapariga já que o tamanho dos testículos intimidaram-me, mas afinal eram apenas dois ovários saudáveis.
O que é indescritível é a sensação de querer cumprimentar aquele bebé, começar já a pegar nele e dar colo. Sair da clínica sabendo o que vi já não seria o mesmo. Tinha agora a percepção de como estava a minha filha e uma melhor certeza de que tudo estaria bem, assim assegurado pela Dra.
Entretanto, chegou o dia de eu me dirigir à sede do hospital para a minha primeira entrevista, sendo esta em grupo. Não vejo qualquer benefício de fazer uma entrevista em grupo além de a empresa despachar uma série de candidatos. Talvez para uma empresa de vendas em que desejem apanhar a pessoa que não se cala, mas ainda assim não significa nada. Seja como for, foi a minha estratégia, ser o primeiro a responder a tudo, mesmo que não fizesse sentido ao início. O que, para minha sorte, fez. Excepto uma questão: o que dizer a um senhor que já fez três pedidos e ainda não teve resposta? O que eu respondi, em primeiro lugar, foi que pedia desculpa. A minha inocência aqui, olhando para trás, foi hilariante. A ingenuidade tinha o coração no lugar certo, mas faltava-me conhecer a realidade de um serviço administrativo com esta dimensão e até que ponto as nossas expectativas de resposta são válidas.
Engonhámos todos um pouco sobre a questão e o debate de ideias foi-se desenvolvendo até que comecei a pensar fora da caixa e quebrei o sistema: "mas esperem lá, no enunciado não diz que nós não conseguimos resolver a situação. Portanto, tento resolver a situação mesmo que já tenham tentado antes". E assim julguei ter vencido o concurso da praça pública, já que os exercícios anteriores foram absurdamente fáceis.
No entanto, não estava confiante. Olhando em volta, eu era a segunda pessoa menos atraente do grupo. A menos atraente era o outro homem, sendo o resto do grupo meramente composto por senhoras com abundância em maquilhagem. Eu nem um blush tinha, apenas levei o que me restou do Hugo Boss enquanto estive na Dinamarca. As minhas chances não eram favoráveis.
Mas tenho de destacar a pergunta merdosa que cai sempre: "Porque querem trabalhar connosco?" A única resposta verdadeira é "porque preciso de dinheiro e a vossa concorrência ainda não me respondeu ao e-mail de ontem". Mas quando chegou a vez do senhor, já na casa dos 50, ele foi honesto e disse porque precisava de trabalho. Não em tom jocoso, mas sim em desespero por já não saber por onde procurar. Os 50 anos não foi um factor eliminatório. A razão de eu destacar esta história foi o tremer de voz quando o disse. O desespero era palpável e não consigo imaginar quantas entrevistas terá frequentado nem a pressão horrível que devia ter em casa. Foi o pedaço que mais me marcou naquele dia e saí a pensar no futuro do senhor.
Tínhamos agora o ninho montado. Talvez faltassem alguns detalhes, mas já podíamos receber a nossa Rainha. E foi então, durante uma noite, que senti o primeiro pontapé no meu nariz, após tantos anos de vida no Liceu. Nos primeiros pontapés, visualmente, só se vê a barriga a tremer um pouco, como alguém que não tem muito saldo mas manda um toque para que liguem de volta. Era assim tão rápido, nem dava tempo para entender o que estava a acontecer, apenas o rescaldo. Tanto que o primeiro pontapé, eu não apanhei, apenas fui chamado à atenção que tinha acontecido, sendo que, para minha surpresa, quem se apercebeu do pontapé foi a mãe do próprio bebé, doravante conhecida como a minha namorada. Na realidade, ainda estando eu na Dinamarca, assisti ao momento através de Skype quando a minha mulher sentiu o primeiríssimo pontapé, na altura ainda confusa sobre se teria sido realmente um pontapé ou se foi a nossa filha a arrotar que nem uma besta pequenina. Mas agora tínhamos a certeza, era um pontapé e a partir de aqui viria a começar o verdadeiro massacre nas costelas da minha Senhora.
Algum tempo depois, fui chamado para uma entrevista, desta vez no próprio Call Center do Hospital. Mas na realidade não é um Call Center. É um Contact Center. Um Contact Center é um Call Center mas mais profissional. Ou assim queremos transparecer, a verdade é que a imagem à sociedade é a mesma. No edifício, aguardei por ser chamado por uma senhora que me encurralou num pequeno estaminé onde ficou a saber tudo sobre mim. O meu nível de experiência a atender o público era nenhum, mas fiz a velha jogada de vender o peixe com o que sabia fazer. Afinal, eu trabalhei em palco como actor e como apresentador, logo, sabia interagir com diferentes pessoas. Acontece que há uma distinta diferença em lidar com alguém que te acha o pior apresentador do mundo e alguém que está à espera de receber 1500€ de reembolso. Um tende a ganhar maior razão em utilizar um vasto vocabulário com o sufixo 'alho'.
Depois de enganar que tinha experiência na área de comunicação social e ter um forte leque de software onde absolutamente nada seria útil para a minha função, dei o meu trunfo: disse que, quando chego atrasado, é quando chego a horas. E era verdade, eu preferia chegar uma hora mais cedo e andar às voltinhas feito parvo para que, na eventualidade de apanhar algum congestionamento nos transportes, ter a vaga chance de chegar em cima da hora na pior das hipóteses. Claro que, com o passar do tempo, vou-me desleixando mais, mas tal como conhecer os sogros, o que conta são as primeiras impressões e se trabalhas ou não em multimédia. O facto de ter falado que um dos meus pontos fortes era chegar a horas fez com que imediatamente conquistasse a entrevista pois acabei por antecipar um dos tópicos a serem falados posteriormente.
Apesar de eu necessitar daquele trabalho desesperadamente para suportar a minha família, não estive em momento algum nervoso. Ir com a atitude de "se conseguir, consegui, se não conseguir, há mais trabalhos" funcionou como forma de misturar descontracção e confiança suficiente, levando-me a responder mais ao tom de "eu sinto que tenho capacidades para desempenhar este trabalho", evitando o fabuloso "o meu sonho desde pequeno é aturar reclamações por merdas que não fiz em nome da vossa empresa".
Saí da empresa confiante que tinha chances, talvez por não ter visto directamente concorrência mais atraente do que eu. E, assim, estava a nossa vida a decorrer bem. Estava junto dos meus amores, o nosso lar estava pronto o suficiente para receber o fruto do ventre da minha namorada e estava bem lançado para obter um emprego.
Senti-me em casa. Não com a minha chegada ao aeroporto, não com a minha família a abraçar-me. O que me fez sentir em casa foi entrar no táxi e ouvir ofensas num trânsito mais coagulado que a nossa economia. Obviamente estou a exagerar, ainda dava para as motas passarem. Mas agora sim notava a diferença do espaço em que me encontrava. Era tudo tão familiar por onde olhava com apenas uma novidade que sentia: poluição. O ar no Marquês pesava-me os pulmões como nunca senti antes, uma notória contradição à pureza do ar que senti em Aalborg onde a bicicleta tem prioridade e os automóveis são vistos como cães que não podem entrar na loja excepto se fizer muita falta ao dono para conseguir movimentar-se.
Cheguei a casa, pousei as malas e não houve tempo para contemplar o meu lar pois havia uma dose de hambúrgueres à minha espera no restaurante.
Cumprimentei os donos do restaurante, fiéis amigos, ao que me comenta um dos donos: "estava a ver que não chegavas a tempo". O pensamento de muitos, ou talvez de todos. A barriga da minha esposa estava a ficar madura e foram 3 meses que passámos longe um do outro, o que em anos de cão capado dá algo como 76 anos sem nos vermos. Perdi três ecografias, tendo a terceira ocorrido na semana em que regressei mas por a Vueling me ter adiado a data de voo não foi possível regressar como previsto. Felizmente, já era esperado ser feita uma quarta ecografia, ao qual já estaria presente para ver a minha filha em directo. Mas, por agora, tinha de apreciar a minha tão aguardada dose de hambúrgueres e terminar com um saudoso cafézinho.
Já em casa, tínhamos de abrir as malas e constatar que tudo o que era roupa estava ensopado por ter ficado à chuva no aeroporto de Barcelona. Mas pior, a minha esposa repreendeu-me pela roupa que não trouxe de Aalborg, tendo deixado ficar a maior parte das calças novas e trazido as velhas. Na altura não pensei tanto no que estava a arrumar mas sim no que conseguia arrumar até a mala não se aguentar fechada, e ainda hoje me custa em pensar no que deitei ao lixo. Estou certo que ela nunca me perdoará. Eu sei que não, pela forma como o assunto volta quinzenalmente. Na altura de arrumar de vez e sem regresso, é importante saber arrumar mas eu estava na ansiedade de conseguir arrumar o que fosse. Eu estava mais preocupado com a quantidade do que com a qualidade o que, falando em roupa, é sempre um assunto polémico.
O meu cansaço era muito, mas ainda havia algo importante a fazer: montar o berço da nossa pequenina. A minha esposa aguardou pela minha chegada para iniciarmos o ritual mais sexista e mais perfeito que existe. Eu, o homem, o pai, monto o berço para assegurar a minha filha, dando um espaço onde pode dormir. A minha esposa, mulher, a mãe, faz a cama, dando um espaço onde pode descansar e sentir-se aconchegada. O simbolismo é incrível e é dos pequenos passos que mais cimentam que sim, vai haver mais uma pessoa nesta casa a pagar contas. Claro que nunca se poderia inverter os papéis na construção do ninho pois eu nunca conseguiria fazer uma cama merecedora da minha filha já que os lençóis estariam no chão e os cobertores a fazer de tenda.
Mas, mais importante que tudo naquela dia, era eu poder dormir o resto da tarde encostado às minhas mulheres. Fechámos as janelas, dissemos aos vizinhos que não queríamos ser incomodados o que, por uma vez na vida, respeitaram, e adormecemos juntos. Eu por exaustão e a minha esposa por sentir finalmente segurança enquanto a abraçava. Finalmente, o conforto que não sentíamos há meses.
Este pedacinho de alegria viria, porém, a ser desafiado em muito pouco tempo. Estava planeado um almoço de família em casa dos meus pais e aproveitei para convidar uma familiar próxima para me ver pois entretanto eu estaria ocupado a procurar trabalho. O que se seguiu no almoço foi o princípio de uma catástrofe que de certa forma eu esperava mas não nestes termos.
Eu e a minha esposa tínhamos as nossas razões pessoais, mas mesmo sem o nosso motivo principal; e que me perdoe o leitor mas não poderei referenciar, é apenas para reforçar que tínhamos sim uma razão mais forte; estávamos de acordo com a nossa preferência: Não queremos ninguém na maternidade. E assim, a minha esposa pediu à minha familiar que não fosse à maternidade, apenas iriam os meus pais.
É sempre das frases mais divertidas para se dizer à família, próxima da hilariante "não iremos baptizar com p" ou também a muito divertida "vamo-nos casar para o mal de todos". O não querermos ninguém na maternidade retira a importância de várias pessoas e rouba-lhes a memória e a oportunidade de poder dizer "já estive com ela" "com a mãe? Como está" "Quem? Ah, sim, também lá estava!"
À nossa frente, este familiar foi compreensivo, para minha satisfação. Mas nas costas, a pessoa frontal (sempre estive para descobrir de onde veio este título fictício), tem uma epifania contra a minha mulher e o facto de eu ter ficado calado durante o almoço e não ter defendido os interesses da minha familiar. Mais tarde, por telefone, recebi uma lição da minha mãe em como, sendo um casal, eu também tenho que defender os meus interesses e não ficar calado. Eu concordei com a minha mãe e decidi, assim, defender os meus interesses de força maior fora da opinião da minha namorada. Eu disse que, por mim, nem os meus pais estariam presentes.
Com ou sem motivo, era verdade. Eu não queria mesmo ninguém presente. A razão é simples: realisticamente, pode correr mal e pode correr muito mal. A última coisa que será preciso preocupar-me é com as visitas que estão à entrada do hospital para saber qual é o quarto. É um momento em que quero dedicar-me à minha mulher e à minha bebé, nada mais ao redor me interessa. Mas, conforme referi, havia um outro segredo. Estava relacionado com motivos de segurança, ao qual, com permissão, revelei à minha mãe já que iria estar presente. A partir de aí, a minha mãe defendeu-me até ao fim e ainda no momento em que escrevo este parágrafo não fala com a minha familiar pois a mesma decidiu culpar a minha mãe de tudo ao invés de ter falado comigo. O que continua a não fazer sentido mas vá-se lá entender.
A razão de eu lavar um pouco a roupa suja publicamente, que poderia ser ainda mais lavada, engomada e posta num cabide, deve-se a ser importante referenciar, uma vez mais, que a família não é assim tão importante só pelo estatuto e não estarão sempre do nosso lado. Foi um tema que provocou muitas dificuldades, especialmente para a minha mãe que ainda hoje recupera, ainda que eu e o meu irmão estejamos surpreendidos com a força e determinação com que o fez. Mas, a verdade de eu não ter respondido a altura foi simples: a minha namorada vai ter uma bebé. Ou nos respeitam, ou não me interessam. Puro, e simples egoísmo, que além de delicioso é importante ocorrer. A segunda tarefa a ser tratada quando se espera um bebé, além de assegurar que será acolhido num lar seguro e preparado para receber todas as necessidades, é estabelecer os limites. Há quem o faça bastante cedo e com a idade é mais fácil de haver respeito por já haver uma ideia do que a pessoa tolera ou não. Em jovem, é mais complicado anunciar as regras por parecer cortar o cordão umbilical abruptamente o que leva à famosa frase "estás diferente". Aconteceu comigo quando apresentei a minha relação aos 20 anos. Não estava diferente, simplesmente tive de delinear o meu perímetro e implementar as ideias que sempre tive sobre uma relação. Com a chegada de um bebé, falamos naturalmente de uma circunferência maior.
É fácil ganhar o receio de pais jovens não saberem o que fazer com um bebé e sufocar com auxílio. A verdade é que ninguém sabe o que fazer com um bebé. Ninguém. Mas todos aprendem, independentemente da idade, porque têm de aprender. Claro que, como na escola, só aprende quem quer. Mas a importância dos limites serve para deixarem os pais serem pais. É importante arregaçarem as mangas e conhecerem o bebé que têm, além de que serão os pais que maior saudade sentirão daqueles momentos iniciais, justificando que queiram estar sozinhos para saborearem todo o prazer que é ter um filho. E fazê-lo também. Convém que os deixem estar sozinhos quando é para fazerem um filho pois também dá prazer e torna-se bizarro se não os deixarem em paz. Que o diga a minha avó.
Por isso eu perdi um familiar e pela mensagem que enviou à minha mãe esse familiar alegadamente morreu. Estranho ter morrido e mencionado que iria mudar de telemóvel, nunca percebi a relevância. Se está morto, não vou telefonar. Aliás, nem em vivo me atendeu, certamente não será em morto. Uns tempos depois voltou a comunicar pelo mesmo número. Se calhar apercebeu-se que dava trabalho mudar o número em todos os hospitais, contractos e em lojas onde tenha cartão de fidelidade. Podemos nunca vir a descobrir, mas aparentemente há boa rede no Além portanto nem tudo são más notícias.
A leveza com que eu falo em perder familiares pode parecer bizarra, mas da mesma forma eu celebro quando a ganho. Família é um conceito. Ter um DNA semelhante não é o suficiente para celebrar contractos vitalícios. Assim fosse e os órfãos nunca teriam pais na vida. Não é verdade. Mãe é mãe, mas mãe pode ser qualquer pessoa. Quem o dita não sou eu ou outra pessoa, é quem é filho. Deste modo, tenho outros tantos irmãos que não são de sangue mas viveram a mesma infância que eu. Há quem os chame simplesmente de amigos, e há quem os conheça. Pessoas que estão a Km de distância e não há um dia em que não me passe uma memória a relembrar. Foi deste modo que lhes contei a notícia: "Vais ser tio(a)". E, felizmente, a minha filha tem imensos tios. A família são o que considerarmos que seja e que precise ser. É certo que eu e a minha esposa teremos uma tarefa complicada quando o nosso rebento precisar de fazer uma árvore genealógica no primeiro ano com massinhas, afinal tem uma quantidade enorme de tios e outros espaços preenchidos pelos colegas poderão estar vazios para ela, mas eu gosto de pensar que será criativa e irá encher a cartolina com placas de lasanha.
A relevância de eu ter contado isto é tanta como quando disseram num funeral, meses depois, que a minha mãe queria ver o tal familiar no lugar do morto. A minha mãe sempre teve tendências de assassino em série, é verdade, e toda a gente sabe. Mas há uns bons anos eu e o meu irmão tivemos uma conversa séria com a minha mãe sentados no sofá desconfortável da nossa sala onde pedimos para ela parar de matar pessoas porque parecia mal. Ela jurou que não voltaria a matar ninguém, por isso a observação proferida no funeral foi apenas ignorante. A minha mãe não queria ver ninguém no lugar do morto. Apenas queria o mesmo que o filho mais novo: que houvesse menos parvoíce no mundo.
Isto tudo para verem o que desencadeou eu ter uma vontade: não quero ninguém na maternidade. Depressa, comadres zangaram-se; a minha mãe virou ovelha negra na família, fazendo companhia ao meu irmão que já era uma ovelha de pêlo escurecido; e passámos a ter duas pessoas na família que adoptaram a frase: "pois, já sei, eu é que sou o mau". O primeiro passo é admitir. Iria parecer horrível vindo de mim.
Por uns breves instantes, eu e a minha namorada ponderámos: será que devíamos desistir e fazer a vontade em deixar que venham à maternidade? Os instantes foram de facto breves: não. Aliás, só me deu mais certeza que não queria ninguém.
Se a família da minha esposa teve defeitos quando soube que o técnico de multimédia estava oficialmente preso à família por razões naturais, ao qual a minha família celebrou por eu afinal gostar de mulheres, o inverso ocorreu com estas decisões. A família da minha mulher foi compreensiva e aceitou esperar pelo momento oportuno para conhecer o novo membro, podendo aproveitar com todo o tempo possível. Já a minha família comportou-se como um grupo de crianças mimadas que não sabem entender o motivo do não, só ouvem que não e pronto. Claro que estou a generalizar, houve sempre familiares compreensíveis nos dois lados e nos momentos cruciais.
A minha família também aprecia apontar as forquilhas à minha namorada como culpada de seja o que for, inclusive os testes militares na Coreia do Norte, mas a burrice impede-os de ler entrelinhas. A minha namorada pediu que não fossem à maternidade. Já eu, disse que nãoqueria ninguém na maternidade. Uma diferença drástica. A minha namorada não queria mas disse-o de forma a não ferir ninguém, embora não tenha de haver motivos para ferimentos, mas sim em vã esperança de compreensão alheia. Eu mantive-me calado naquele instante porque era de opinião mais assertiva: não quero. Simplesmente não quero. E houve mais umas regras que defendi perto do nascimento, ao qual irei descrever quando chegarmos a esse mítico capítulo.
Aos novos pais, por favor, defendam os vossos interesses. Não se preocupem com as pessoas mais sensíveis pois não têm nada que ser sensíveis. É irrelevante. Permitam o que quiserem, proíbam o que bem entenderem. É importante darem a conhecer as regras e um bom exemplo que posso indicar será no combate entre o horário de visitas e o horário de sono do vosso filho. Há sempre quem obrigue que acordem o bebé pois tem tempo para dormir, é mais importante sentir o bigode da tia. Isto ocorre fundamentalmente por considerarem apenas 2 horários: o deles e o do bebé, que é facultativo. Mas a realidade é que existe um terceiro horário: o dos pais. O momento em que precisam de descansar e de estarem um com o outro a ignorar o telefone por um bocado. Dou o exemplo de uma prima da minha esposa que no primeiro bebé permitiu tudo e arrependeu-se. Ao segundo filho só deixou que pudessem interferir na rotina meses após o nascimento. Uma decisão que eu respeito imenso e cada vez mais compreendo.
Não aconselho que sigam o mesmo exemplo que nós. Não se trata disso. Apenas partilho exemplos do que correu bem e do que correu mal connosco. O que defendo, sim, é a importância do que vocês considerarem como necessário para que consigam ser os melhores pais possíveis pois é o vosso mecanismo para serem bem sucedidos em algo que não compreendem para já mas que estão a fazer por isso. Temos sempre que pensar nos outros mas este é um momento em que têm de pensar apenas em vocês pois, e acreditem, estas pequenas decisões ao início irão ditar a vossa capacidade de gerir a relação familiar de três que está prestes a ocorrer. E é importante que os familiares e amigos aprendam a respeitar as vontades todas e a fazer menos birras pois a mulher durante e após o trabalho de parto não pode estar com quaisquer preocupações. Só existe o bebé, nada mais. Há tempo para encher os álbuns de família e comparar o nariz daquele trisavô que batia na mulher porque naquela época era aceitável. Levem todo o tempo e peçam todo o espaço que precisarem para vocês. Por uma vez, são o centro do universo, o Sol gira à vossa volta e assim o merecem. É o melhor conselho que vos posso dar com base nas minhas previsões e experiências. O segundo é pedirem subsídios ao governo.
O meu regresso foi, portanto, algo atribulado. Mas não dei a importância que seria de esperar. O mínimo nervosismo que me causou foi tudo o que a minha mãe teve de aturar. E, mais uma vez, tudo isto só porque eu queria algo para o nascimento da minha família: que não me chateassem o juízo.
A grande punchline disto tudo é saber que muitos destes familiares estão neste momento a ler precisamente esta frase. E foi por isso que escrevi este texto com tanto carinho e amor que tinha no coração. Porque fiquei calado na altura por desprezo, por estar focado na minha mulher e na minha filha. E porque agora vejo a relevância de partilhar este episódio com o mundo, primeiro porque quero ajudar os novos pais a dizer que não estão sozinhos, eu entendo as parvoíces que têm de aturar; segundo, porque quero agradecer publicamente à minha mãe que nos defendeu e não merecia passar por tanta estupidez; e, em terceiro, porque quero ajudar o mercado nacional. Sei que nenhuma loja de roupa patrocina o blog mas ficaram a ganhar com este texto pois houve uma subida considerável nas vendas de casacos com carapuças.
Eu tinha duas missões com o meu regresso da Dinamarca: assegurar o nascimento da minha filha e conseguir trabalho. As regras já estavam claras, agora só faltava o outro objectivo.
Quando partimos para a Dinamarca, os tempos estavam sombrios para nós, com todas as despedidas e o que estaríamos a deixar para trás. A última noite foi tão estranha e a última manhã foi tão rápida. A memória mais forte que tenho, além da minha mãe a chorar enquanto me agarrava a saber que teria mais um filho longe dela, foi ver a minha avó à entrada da nossa casa a despedir-se. Não me lembro de a ver chorar, mas lembro-me de a ver sentir-se sozinha. E foi a última memória que levei dela comigo, à porta, sozinha, perfeitamente enquadrada à entrada como se fosse uma pintura. O meu pensamento foi sempre: será que a voltarei a ver?
A viagem em si foi fantástica. Foi o primeiro vôo da minha mulher e sentíamos aquela sensação de aventura e de conquista. Conseguimos, no final de tudo e de tanto. Estávamos, pela primeira vez, sobre as nuvens. Sentíamos medo, confiança, dúvidas e orgulho. Fizemos juntos, por iniciativa própria, e fomos contra tudo o que nos apresentou como obstáculo. Em parte, talvez tenha sido o nosso grande erro. Fizemos bem em ter ido nas nossas condições?
Chegámos a Copenhaga e depressa ficámos encantados. Não com os preços, mas com as casas de banho. A casa de banho do homem tinha fraldário. Um primeiro sinal para mim vindo do nosso grande Senhor, George Carlin, e a primeira noção do desenvolvido que era aquele país a comparar com Portugal. Como eu digo sempre na cama: são as pequenas coisas.
E assim aterramos em Aalborg, prontos para a conquista. Apanhámos o primeiro autocarro depois de eu perguntar se parava em Jomfru Anne Gade (apontei para um papel com o nome escrito, não sabia dizer yomfru eine gueile), e chegámos ao nosso destino. Uma rua de strip. Bem, não a rua em si mas os bares à volta tinham várias meninas e senhoras ilustradas com uma quantidade de roupa interessante para o clima em que viviam. Entrámos no segundo autocarro para o Danhostel e após várias perguntas ao motorista que não nos percebia muito bem, reparámos que ele passou a paragem terminal e acelera para um percurso estranho. Será que ele entendeu que eu queria uma experiência do Eli Roth?
Não ajudava ficar no meio do nada
O sangue no letreiro já estava limpo quando cheguei
Mas não. Bem, no fundo não. Ele levou-nos para a porta do Danhostel, e voltou para o seu terminal. Foi a primeira vez que andei num Taxi-Autocarro, e viria a andar mais duas ou três vezes. No hostel, onde pensámos que íamos ser separados por sermos do sexo oposto, puseram-nos nas cabines de casal, onde só era permitido amor. A nossa sorte foi não só ficarmos na companhia da melhor malta das cabines como tínhamos a vantagem de estarmos num espaço asseado, ao contrário das restantes cabines, como o pobre do meu amigo Engenheiro que vivia com malta que fritava chouriças e deixava a gordura no chão. Estou a escrever a sério.
Depressa o contentor verde pareceu convidativo
Mas antes desse horror, o Engenheiro apresenta-nos a mais portugueses, como Pedro, o Cientista de Aveiro que foi amável em nos deixar ficar na casa dele, dividindo com o Engenheiro, a Elisa, a Arquitecta, que foi a primeira pessoa a nos contar como sobreviver naquele país tropical, e uma doninha sem nome que andava connosco. Outros portugueses foram aparecendo dias depois e, quando nos pusemos a fazer contas, éramos uma comunidade. No fundo, éramos as minorias do hostel.
Na nossa cabine, vivemos com os Romenos e com o Matej, (chamávamos Matthew não sei bem porquê), que esteve alguns dias com a namorada, de quem não me recordo do nome mas era fã do Batman e no final da vida é só o que importa. Mais tarde, juntou-se a Mar, a Nossa Irmã, por uns tempos, e assim se formou o núcleo de amigos.
Onde eu e a minha esposa passámos os dias a sonhar que viríamos a conseguir algo melhor. E que alguém havia de matar as vespas na nossa janela.
Na primeira noite em Aalborg, a minha mulher foi-se deitar de exaustão e eu fui caminhar com o Engenheiro mais um grupo extenso de imigrantes. Fomos para um porto ali perto e ficámos horas ao frio da noite sobre a lua a contar quem éramos e o porquê de lá estarmos. O principal motivo, como bem adivinham, era procurar por algo melhor. E assim estava formado um circulo de jovens europeus perdidos, fora de casa para tentarem um melhor futuro do que prevêem. Era o clube da Ceia.
De regresso ao hostel, ainda fiquei sentado mais uma hora com o Engenheiro a bebermos cerveja, como só se consegue com os melhores engenheiros, e falar do que esperávamos a partir dali. Foi o momento em que realmente me senti no país pois fiquei a olhar para um céu diferente e a aperceber-me do quão realmente longínquo eu estava dos meus pais; a forma natural que temos de nos guiar, como uma bússola da vida. Era ali que eu estava agora.
Conseguimos.
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No último mês em Aalborg, eu aproveitei a minha estadia de forma diferente. Já tinha o bilhete de vôo e já não tinha contas com que me preocupar. Seria de esperar que eu gozasse o país, mas fiz o contrário. Mantive-me a estudar até ao final. Depois do trabalho de grupo, eu ficava até à noite na universidade, não a trabalhar mas a fazer o que faria em casa. Era o único espaço em que ainda sentia ser meu. Toda a cidade e a própria casa perdeu a importância. Falei anteriormente deste assunto, do que mudou sem ter a minha mulher, mas ainda tinha a esperança e luta pelo seu regresso. Agora, sabia que estava tudo acabado e só via a casa como um abrigo.
Certo dia, enquanto eu preparava as arrumações para exportar para Portugal através do Serviço Nunca Mais me Atrevo, alguém toca à campainha. "É agora!" pensei eu, "a NOS encontrou-me!". Abro a porta com o martelo do Ikea prestes a recriar a cena do corredor do Oldboy quando, a ser visto, era só a Sandra, a Cientista. Convidou-me para um passeio.
Fiquei a conhecer o campo atrás da nossa casa, que até ali nunca tinha passado por ele, e fez-me pensar no quão perfeito seria ver a minha filha correr por ali. Quem sabe, venha a correr. Convidou-me para ir beber café em casa dela, sendo que a cozinha era partilhada por todo o andar do prédio. Por esta altura, estava mais do que habituado a beber café com estranhos, a ponto de o deixarem de ser. A Sandra fez-me algumas destas, de aparecer do nada, precisamente quando eu estivesse com rolos no cabelo a envernizar as unhas com duas rodelas de pepino nos olhos e a dizer "anda daí, vamos para o quentinho!"
Não ter de me preocupar mais com as contas fez com que eu pudesse comer melhor. E por comer melhor quero dizer que me enchi de asas de frango picantes do Rema1000. Não são picantes e talvez não seja frango, mas viciei-me. A comida também teve um peso na depressão, ter de comer comida com sabor a cartão e ter de fazer durar o mais que pudesse, não ajudava o dia a dia. O que me safou foi ter já comprado pimenta antes de estar mal, dando para mascarar alguns segundos. Talvez por isso me tivesse viciado tanto nas asas de frango. Nas palavras dos GNR: 'As asas são para devorar'
Não esquecer as melhores curly fries
Outra forma de arranjar comida era ir aos contentores. Ao contrário de Portugal, os empregados (como quem diz, as empresas) não se incomodavam com as pessoas irem buscar carne ao lixo. O L conta que quando teve um supermercado perto de casa, engordou por ir tanto ao lixo. Chegava a encontrar entrecosto já marinado para ir ao forno tal como estava, o que era caríssimo mas ali estava. Eu ponderei imensas vezes, mas nunca cheguei a ir. Talvez por já não me sentir no pico da minha dificuldade, mas sentia-me nervoso com o saque à missão impossível. Nada contra o Brian De Palma, mas receio os efeitos secundários de representar o Tom Cruise. Felizmente, a minha roommate era mais inteligente e chegou a ir buscar comida.
Uma pessoa tenta não seguir os estereótipos mas depois chamam 'Viking' ao pão...
Nunca comi batatas tão boas. A validade acabava em 4 meses, possivelmente foram para o lixo por serem tão caras que ninguém as comprava
É difícil de falar em comida sem falar sobre Portugal. Tive saudades da nossa comida? Bem, eu tinha o nosso azeite e o "nosso" café, o que são os nossos pertences que mais aprecio. Fora isso, os pratos em si são sempre possíveis de replicar no estrangeiro com a excepção de maravilhas como Bacalhau à Brás pois ninguém compreende o potencial das batatas palha. O que eu depressa senti saudades foi, sim, os cafés (estabelecimentos) por todo o lado. O simples acto de ir beber um café ou um Ucal fresquinho acompanhado por um pastel de nata, ou como eu prefiro, um bom bocado (cruelmente posto de parte face ao pastel de nata), era talvez o que me deixava com maior saudade e inveja dos portugueses que foram visitar o país no Natal. Estar com a família também é interessante, mas a saudade maior era de beber uma bica, o resto vem depois!
E é com este pensamento que vos falo do jantar organizado pela Ana, a escritora. A Ana juntou todos os portugueses que conseguiu em casa dela para um jantar à português: Bifes de frango com cogumelos e arroz! Era para ser uma bacalhoada mas eu não tinha postas que chegassem no congelador, por isso recriámos o segundo melhor prato.
Estávamos todos sentados à mesa como uma grande família que não se via há muito tempo, com primos que brincámos uma vez num casamento e agora é suposto sermos os melhores amigos independentemente dos pontos de vista serem diferentes, particularmente no que toca ao racismo. Fomos obrigados a apresentar, individualmente, quem éramos, o que estávamos ali a fazer (jantar, presumo) e o que esperávamos do nosso futuro em Aalborg. Nós somos os protagonistas do filme que é a nossa vida e eu, tal como um bom filme, era o último da mesa a apresentar-me. Havia bastantes portugueses entusiasmados por estarem ali, com imensas expectativas, fogosos por serem refugiados do PSD, até irem perdendo o sorriso com o desanimo do que muitos contavam como experiência. Até chegar a minha vez, em que anúncio a rir-me que me vou embora dentro de duas semanas. Dizia-o com tristeza profunda, mas não pude ignorar o hilariante que foi, no meio de tanta gente feliz por ter conseguido chegar ali, eu terminar as apresentações com o maior exemplo do que pode correr mal. Alguns demonstravam inícios de regressarem ou procurarem [novamente] algo diferente; porém, eu já tinha o bilhete.
Quando se fala em jantar, todos se conhecem
O jantar foi bastante divertido, incluindo jogos para toda a família como estampar sticky notes na testa e tentar adivinhar se somos o Fernando Mendes. Foi a última vez que vi alguns dos meus amigos que por lá fiz, como o Pedro e a Elisa, o Cientista de Aveiro e a Arquitecta, respectivamente. Foi bom, porém, ter sido um jantar à português como última memória viva. Da Ana, a Escritora, despedi-me três vezes, porque o português é assim. Não deixo de referenciar a Mafalda, a Jornalista (tive de ir ao Facebook Mafalda, avisa-me antes de eu publicar se estiver enganado). Conheci-a no jantar mas partilhávamos os mesmos amigos durante o mesmo tempo de estadia. Ficámos a conversar lá fora, sendo um momento que não me esqueci. A conversa, ou melhor, as palavras não foram nada fora do comum mas notou-se que estávamos interessados em falar um com o outro e, de alguma forma, tentar resumir os meses de potencial amizade num pequeno excerto antes de me ir embora. Dizer-me que gostava de me ter conhecido e à minha mulher mais cedo, foi uma belíssima forma de despedida, acompanhada pela tristeza de saber que também a minha esposa iria gostar de estar presente no jantar . Não tivesse sido a doninha do hostel, que nem leva uma letra maiúscula, e podíamos ter sido amigos mais cedo.
Caminhei ao longo da noite, como sempre, até casa. Celebrei o que era ser amigo, companheiro e português, tudo numa noite com um simples jantar. Muitos daqueles amigos não voltei a ver, outros não voltei a meter conversa. Mas fica para o destino escolher quando iremos cruzar de novo o caminho. Se o destino demorar muito ou fizer uma birrinha mimada, meto conversa no Facebook, para acelerar o processo.
Este sentimento de camaradagem era algo que felizmente eu trazia de Portugal, pois de tudo o que eu me possa queixar, amigos nunca foi um problema para mim. Considero que fiz amigos para a vida em Aalborg, mas os nativos não são muito de ir sair e ir beber um café ali para passearmos no outro sítio. Porquê a conversa com um café quando podemos falar no Facebook? Sair de casa para convívio realiza-se nos bares ou durante o verão em que as casas ficam vazias. Não que dê para os censurar tendo em conta o clima, mas nem uma selfie para o Instagram para eu impressionar os meus pais?
Felizmente, eu tinha a Mar, a irmã. Eu e a Mar tínhamos muito em comum, nomeadamente a península onde nascemos e já termos viajado, imaginem só, a dois países idênticos: Dinamarca e Espanha, sendo que eu fui uma vez com o meu tio abastecer a Badajoz, a capital.
O local onde os amigos se encontram e onde os estrangeiros pedem direcções
Combinei com a Mar precisamente um café como manda a tradição dos Ibéricos. Infelizmente ela não me deixou pagar e até hoje lhe devo um café de 10 kroner e meio bolo. Embora as conversas que tivemos no hostel, onde deu para perceber a sua simpatia, foi neste passeio que deu para realmente nos conhecermos. Falámos sobre a nossa perspectiva sobre Aalborg e do que conhecemos dos Dinamarqueses, generalizando. Ainda que tínhamos um ponto de vista muito positivo, concluímos o que nos fazia falta dos nossos países, particularmente este contacto humano de simplesmente irmos beber um café para falar e conhecermos mais um pouco dos nossos amigos, mesmo que seja só para podermos dizer "olha, temos de repetir um dia destes", e com "estes" queremos dizer dentro de dois anos.
Falámos sobre esta frieza na população precisamente no espaço mais frio, junto ao rio. A Mar com saudades do seu quente mar mediterrâneo e eu com saudades da mulher dos bolinhos de Carcavelos. Mas também concluímos em como era bom haver esta possibilidade da falta de contacto, de podermos estar realmente sozinhos com os nossos pensamentos sem nos preocupar-mo-nos em sermos abordados. Como indiquei por estes capítulos, caminhei tanto quanto pude e guardei memória da maior parte dos trajectos. Nada me faz esquecer quando fui pela autoestrada a ouvir Bob Dylan e a comer beef jerky, sentido-me num trailer de um filme americano com boa música e depois vai-se a ver e é uma decepção de 2 horas com um elenco desperdiçado.
Quando a mistura de frio com vento tornou-se uma parvoíce, fomos para perto da igreja à frente da Student house, em Gammeltorv. Contei-lhe a história de como conheci a minha mulher, quem nós éramos e o porquê deste sonho ter sido tão importante e uma perda tão grande para nós. A Mar comentou que sempre admirou o nosso entusiasmo por estarmos ali e, de facto, não conheci ninguém que partilhasse da mesma energia. Éramos os únicos que afirmávamos que queríamos estar ali para viver, impressionando os próprios dinamarqueses com a resposta.
Este pequeno passeio com a Mar que durou até escurecer, foi dos melhores pedaços que tive em Aalborg. De alguma maneira soube que estava em casa, estando simplesmente sentado num sítio a falar com uma amiga sobre seja o que for. Talvez tivesse sido importante fazê-lo mais cedo durante os meus piores meses de depressão, talvez tenha acontecido no momento certo. Foi uma tarde memorável, tal como o jantar, e também à semelhança, foi um momento de pura simplicidade. Despedi-me da Mar com um abraço em Nytorv e com a promessa de que nos reencontraríamos um dia, já com uma pequena morcega no meu colo.
Ainda passei várias tardes e cafés com a Sandra, a Cientista, que me ajudou durante todo o processo. Com ela, fui também almoçar a casa da Cátia, a cientista, onde fizemos uma pizza caseira que podia ter corrido melhor de aspecto mas o sabor estava lá. Ter vários amigos a falarem é um dos maiores flagelos no que toca à confecção de uma pizza prestes a queimar. Surge mais uma promessa com a Cátia em como nos iremos reencontrar, provavelmente em Portugal quando formos ao McDonald's do Chiado com a Sandra, a Cientista e com a Ana, a Escritora.
Na última semana, aguardei pela chegada do Engenheiro para a nossa despedida, pelo menos naquele país. Ficámos sentados na minha última mobília, o estrado partido de uma cama de criança (um nome digno da minha biografia) enquanto bebemos uma Carlsberg Elephant, conhecida por conter mais álcool do que cerveja; certamente faria um sucesso com os miúdos no Bairro Alto. A despedida com o Engenheiro não custou tanto pois seria mais fácil de me cruzar com ele, já que em Portugal moramos a 15 minutos de distância, se os semáforos estiverem do nosso lado. Ainda assim, era a despedida de um amigo de infância, e não podia ir embora sem uma última conversa com álcool. Foi a última conversa, mas o penúltimo encontro já que ele viria a ajudar-me com as bagagens até ao aeroporto.
No penúltimo dia, fui cedo até à Aalborg Universitet para me despedir do grupo. Entrei na sala e ali os encontrei tal como os conheci. Todos os 2 membros de um grupo de 8. Entreguei o que tinha para oferecer. Nada simbólico, só objectos práticos como fichas triplas e óleo para a bicicleta, extraordinariamente caro por sinal. Ainda ofereci um pacote de bolachas, a verdadeira moeda da universidade, e tivemos a última conversa em grupo. Tinha também uma Tuborg clássica para o Anders mas ele não apareceu por estar doente. Acho que não quis chorar pela minha despedida, sejamos sinceros. Despedi-me do L e do Kasper com um 'até um dia', bem profissional mas sentido. Dei a última volta pelos corredores da universidade para anunciar oficialmente ao secretariado de que iria desistir. Uma vez mais, as lágrimas traíram a minha confiança e assim me desmanchei à frente da secretária. Era o ponto de final da minha aventura e a última vez que viria a estudar.
Decidi colocar-lhes uma última questão antes de ir embora
A minha casa de banho favorita, onde fui muito feliz
A última foto da minha vista diária
O restante dia foi passado a caminhar pela cidade, tanto quanto pude e por caminhos que ainda não teria conhecido.
Comecei por ir ao DanHostel, para me despedir do sítio onde tudo começou. Odiei muito este espaço, mas as memórias são mais do que os dias que por lá passei. Creio que 90% diz o mesmo, que terá sido uma experiência horrível mas que valeu pelas pessoas que conheceram que de outra forma não seria possível. Outros 10% disseram que gostaram da experiência mas sobre estes eu debato-me sobre duas possíveis explicações: terá sido por ser a primeira vez que largam o ninho dos pais em busca da juventude eterna ou terá sido por terem esmagado o crânio num bloco de betão constantemente enquanto diziam "aposto que não consegues fazer isto, a Sara é minha!". Há ainda, possivelmente, dois espécimes que se enquadrariam nas duas teorias, como o russo que se cortou num dedo e foi lavar o sangue no lavatório ao pé da nossa comida a ser preparada. Não que houvesse risco de infectar a nossa carne, apenas realçou a importância de termos comprado o nosso material de limpeza já que a esponja da louça do hostel foi absorvendo o sangue que conseguiu. Não houve nenhuma situação de urgência hospitalar graças a ninguém lavar a louça. O outro espécime era uma doninha.
O rio para onde os corpos eram atirados
A nossa cabine, onde fomos muito...A nossa cabine.
A cabine do Engenheiro, onde passou a ser vegan
A porta azul é a entrada para a cozinha. Mas não se cozinha lá. Sobrevive-se.
Por esta altura já teria um novo dono. Isto porque o povo escandinavo é fantástico, mas há fuinhas em todos os paraísos. O antigo dono do DanHostel (doravante apelidado de O Velho) aproveitou-se do tsunami de estudantes internacionais. Ele obrigava a pagar uma mensalidade e que saísse antes, não reavia o dinheiro. O truque, como muito bem descobriu o Engenheiro, era apanhar na recepção os filhos ou a esposa pois retornavam o dinheiro com todo o gosto, apenas seria necessário avisar com um dia de antecedência. Excepto eu que continuei na cabana por mais três noites sem pagar. Ainda tivemos a sorte pois só sofremos com as condições da casa de banho, com a net gerada por um hamster asmático de muletas e com o preço absolutamente ridículo para lavar e secar a roupa. Era preciso usar três a cinco vezes a máquina de secar. Eu sei que só pagámos por um turno de secagem, mas defendo que não paguei só pelo turno, também paguei pela parte crucial de secagem. Mais do que turno, era uma oportunidade. Uma chance.
Mas, conforme indico, tivemos sorte. Os mais recentes hóspedes ficaram alojados em contentores sem janelas, vivendo de porta aberta. Deduzo que a mudança de gerência tenha ocorrido após as queixas que fizemos à UCN, a universidade que subsidiava o hostel com rios de dinheiro, que ficaram chocados com o que reportámos.
O Velho também tinha a distinta qualidade de ser o único dinamarquês que vi de chinelos de praia. Eu tentei o melhor que pude em avisar os futuros hóspedes.
Por uma vida que tenha salvo, já valeu a pena
Segui do Hostel a caminho de ruas que nunca tive interesse ou razão por lá passar mas que agora não as queria deixar. Enquanto tentava absorver a cidade, a minha mãe falava comigo pelo telemóvel e solicitava fotos de prédios, igrejas e flores. Enviei as fotos dos ramos mais bonitos que encontrei.
As famosas folhagens de Aalborg
Uma igreja onde se pratica religião
Uma igreja onde se pratica religião
Estádio do clube de Aalborg, onde se pratica religião
A última paragem da cidade que eu não podia deixar era o jardim dos músicos.
Uma espécie de cemitério para mim, em que ficava sozinho a contemplar as vidas de quem por lá passou, mas que na verdade é um espaço que simboliza a vida. Os artistas, maioritariamente músicos, que dessem espectáculos no pavilhão ao lado tinham que plantar um uma árvore no jardim, onde é colocado uma coluna que com o pressionar de um botão toca um excerto de três músicas.
Eu referi artistas e não simplesmente músicos por também haver uma árvore do John Cleese com músicas dos Monty Python. De repente, estava num espaço onde já esteve John Cleese, Jehtro Tull, Bob Dylan, B.B.King e, claro, Beyoncé. No fundo é como ir ao Sumol Summerfest mas com muito menos sexo dentro de tendas.
Incluindo a banda sonora do Game of Thrones
É uma ideia genial que seria óptimo em aplicar nos cemitérios. Imaginem que podiam escolher 3 músicas que vos representassem para toda a eternidade ou até os vossos filhos deixarem de pagar as cotas e as vossas ossadas irem para fabrico de gomas com açúcar ácido. Eu escolheria o Fantasminha Brincalhão, qualquer uma dos Fúria do Açúcar.
Finalizei a minha última estadia percorrendo uns 20 Km até à casa dos Romenos, com a promessa de um fabuloso Sloppy Joe à Emigrante Romeno. É impossível descrever o sabor por palavras, por isso vou descrever usando uma equação: x+2=3(y*3+7)
Foram dos primeiros que conheci e dos últimos a despedir-me. Ficou mais um encontro marcado com o destino no que virá a ser uma mítica junção do clube do pequeno-almoço. Houve ainda o pedido de eu mostrar as fotos da minha filha para verem se as minhas gónadas eram capazes de germinar um ser lindo. Também eu precisava de saber.
Restava-me agora regressar a casa pela última vez. Fui o mais lento que pude e escutei todas as músicas que me marcaram na Dinamarca. Já as ouvia em Portugal, mas ali senti-as como nunca. Sabia que iria certamente recordar-me do último dia para o resto da minha vida, pelo que assegurei-me que iria escutar músicas que me fizessem sentido com o que senti. A junção de despedida e tristeza com a vontade de ter a minha filha ao colo fez com que eu oficializasse a música daquela noite como sendo a Take us back, de Alela Diane. E fiquei assim com a memória em que comecei a ouvir a música, numa noite incrivelmente escura, na curva em que a minha mulher passava de bicicleta quando vinha da universidade para casa.
Sentei-me num banco de jardim perto de casa para apreciar o ar um última vez. Eu planeei continuar a respirar até entrar no avião, mas quis sentir a respiração fria e contemplar o silêncio e a última escuridão da Dinamarca, sabendo que viria certamente a ter saudades.
Especialmente do REMA1000 e das suas chicken wings
E assim, caminhei uma última vez até casa.
Tinha o desafio de me ver livre de tudo e arrumar tanto quanto pudesse para trazer comigo. A cama foi o objecto final a ver-me livre e com isso decidi deitar-me para aproveitar 2 horas de sono, acordando às 4h para arrumar tudo estar pronto no aeroporto pelas 10h. Vários objectos como o candeeiro e cafeteira iriam para o lixo e o colchão sendo a de espuma barata, levou-me uma hora a ser cortado com uma faca de porcelana para ir também ele aos pedaços para o lixo. Mas tinha que me livrar da armação da cama, já que a faca não cortava madeira e os meus dentes estavam fossilizados pelo calcário da água.
A minha ideia era despejar durante a noite todo o entulho num contentor das obras do restaurante ao lado da minha casa, o que certamente era melhor do que deixar no jardim ao ar livre. Mas nisto, apercebi-me de um contentor aberto ao lado da casota do Hans Zimmer, o que fez com que me livrasse de um grande peso nas costas, literalmente. Fui atirando dinhei-- quero dizer, objectos como panelas, pratos, talheres, caixas e um piaçaba para dentro do contentor. Um misto de tristeza com alívio, o que acaba também por ser uma boa definição para um piaçaba.
As bicicletas, minha e da minha esposa, foram o meu maior drama. Tentei com todas as forças arranjar coragem para as vender, mas não consegui. A minha não estava em grande estado de qualquer maneira, mas a bicicleta da minha mulher foi o objecto que mais me custou desfazer. As memórias de ela a comprar, de darmos mais um passo na nossa felicidade e de todos os passeios que demos juntos... não conseguia simplesmente entregar isso a alguém. Por isso abandonei as duas, acorrentadas uma à outra, como a nossa pegada neste país e em homenagem ao que vivemos sempre juntos.
Vi-me livre do lixo todo e efectuei toda a limpeza da casa. Olhei uma última vez para as paredes, lembrei-me da emoção de finalmente conseguirmos a nossa casa e ser o início de algo novo, que não foi.
E fechei a porta.
Lá fora tinha o Engenheiro à minha espera para me acompanhar até ao aeroporto. Fui ter com o Hans Zimmer entregar a chave e despedir-me. Foi a segunda vez que ele me viu tão feliz, o que não se enquadrava tão bem com o quão miserável eu fui nos últimos meses, especialmente quando lhe disse a chorar que a minha mulher não ia voltar. Normalmente as pessoas associam a minha mulher ter-me deixado sozinho no país com o excesso de material do Batman que tinha em casa e que as nossas dificuldades eram apenas uma desculpa. Mas o Hans Zimmer tinha um poster do Batman no escritório igual ao que eu tinha na sala, por isso ou ele compreendia-me ou viu que o segredo era não exagerar com o Batman e ter apenas que baste em quantidade material e bom senso, como o número de colheres de açúcar num pudim. Mas não devia ser a última, acho que ele simplesmente compreendia-me sobre a necessidade de espalhar a fé.
A razão da minha felicidade era querer desaparecer dali por ter deixado o colchão da Annie Hall à porta de casa. Bem, na verdade foi ela que deixou. Eu tentei, com a ajuda do Engenheiro, levar o colchão para o contentor mas fomos apanhados pelos homens das obras que nos avisaram para não pormos o colchão no contentor e foram nos vigiando à medida que guardávamos de volta. Por isso saí a correr antes que o Hans Zimmer inspeccionasse e fizesse queixas à minha mãe.
Apanhámos o autocarro e tive a memória de quando viemos do aeroporto pela primeira vez onde tudo nos parecia novo e a viagem fosse como andar de expresso até outra cidade mais a norte. Uma viagem de expresso de 15 minutos. Agora, via o percurso ao contrário, reconhecendo todas as ruas.
No aeroporto fiz o check-in e despedi-me do Engenheiro com um abraço de irmão. Não foi uma longa despedida pois em Portugal vivemos a 10 minutos um do outro, facilmente nós reencontraremos para uma imperial.
Passei os seguranças e recebi uma mensagem da Vueling a informar que o meu vôo tinha sido adiado por mais umas 4 horas. Decidi ignorar a mensagem e fui apanhar o avião da minha hora na mesma. Foi das mensagens mais incompreensíveis, ao lado da NOS que me enviou uma SMS a indicar "tenha um dia de caça" mas esqueceram-se da cedilha.
Guardei as provas
Entrei no avião e voei de Aalborg até Barcelona. Agora, sim, marcou-se o final do nosso sonho. Mas não sem uma última foto do céu que cobiçámos.
Foram 3 horas de viagem onde aproveitei para ver o The Martian. Acabei por adormecer, não sei se pelo cansaço ou se pelo tédio da equipa de salvamento dos Morangos com Açúcar.
Em Barcelona, após uma viagem tranquila, desligo de vez o número Dinamarquês da Telia e abraço a minha querida Movistar. E foi aqui que me apercebi de um último grave problema. O meu plano, amigos, era ficar no McDonald's até o vôo para Lisboa com o computador ligado à corrente e a consumir tanto filmes como saladas. Mas cometi a parvoíce de não pedir para que a minha mala do porão fosse entregue no destino final. Quer isto dizer, pois então, que tive de ir levantar a mala e fazer um novo check-in cá fora. Acontece que a Vueling só regressaria às 6h do dia seguinte. Por não poder atravessar os seguranças, tive que ficar na entrada do aeroporto durante 12 horas com as malas, sem uma ficha para o computador ou telemóvel. Ainda procurei pela Mar mas nenhuma das espanholas era ela. Nunca tive tanta dificuldade em me manter acordado numa franca mistura de sono e absoluto tédio. O wi-fi tinha a velocidade de uma ligação dial-up e a força do nosso PIB. Acabei por desligar o telemóvel para garantir que teria bateria para dizer "cheguei, onde estão? Eu estou ao pé da tabacaria. Olha amanhã o Filipe sempre vem à tarde ou vamos ter com ele de manhã ao Amoreiras?". Os meus olhos tinham bigornas nas pestanas e o que me mantinha acordado era o dinheiro todo que estava a gastar nas máquinas de venda automática. Num ato em que me fez duvidar das minhas crenças, pedi um pacote de amêndoas e caiu outro pelo preço de um, como forma de o Deus católico dizer "ah, coitado do rapaz, este é por minha conta que eu ópois pago ao senhor". O sono não era ajudado por ver toda a gente à volta a dormir no chão, uns em círculo, outros isolados, outros em pé a guardar carteiras e telemóveis de quem dormia para que não perdessem nada. Eu mantive-me acordado até a Vueling chegar mas sinto que perdi a oportunidade de poder contar que fui a Barcelona e dormi com tantos homens.
Já no autocarro para sermos guiados até ao avião, tenho a minha última aventura. Ficamos fechados durante 15 ou 20 minutos a aguardar que as portas abrissem para subirmos a bordo. Já mal se respirava o ar imigrante quando as portas se abriram, precisamente quando começa a chover torrencialmente. Entramos fresquinhos no avião e aguardamos mais 15 minutos quando um passageiro repara que as nossas malas ficaram à chuva este tempo todo. "Ah é verdade", pensou a Vueling. O piloto pede desculpa e seguimos caminho. Cometi o erro de não pedir entrega no destino final, mas fui astuto em trazer comigo tudo o que era electrónico.
Hora e meia depois, chego a Portugal. Estava tanta gente que por momentos ponderei se não vim com o Salvador Sobral, mas recordei-me que só viria a ocorrer um ano depois.
No meio de tudo, encontro os meus pais, a minha tia, a minha avó e a minha mulher, mais redonda. Meti a mão na barriga e pensei "estou de volta filha"